O "empreendedor obstinado" que fez da farmácia uma multinacional
Num dia de sol de inverno, a esplanada do Altis Belém é excelente poiso para um brunch de final de manhã. É lá que me encontro com Paulo Barradas, sorriso na cara e otimismo na alma que alimenta a projetos, como bom empreendedor que é, não se deixando abater sequer pelas atuais dificuldades sem precedentes com as quais tem de lidar quem tem negócios em áreas de tamanha especialização. "É um momento difícil para as empresas", diz-me com a tranquilidade de quem aceita o que não pode resolver - como os "salários justos que se paga para os trabalhadores receberem remunerações injustas, dada a tributação demasiado alta que aqui se pratica" -, mas está sobretudo focado em encontrar soluções para o que se pode melhorar, acrescentar, tornar mais eficaz. Num momento em que enfrenta desafios como os custos de contexto a subir, a competição europeia e global, a luta por dar o seu melhor, pelo grupo que lidera e pelo papel que pode ter no robustecimento do país, o maior de todos é facilmente identificado: fixar talento muito qualificado. "No início, tinha o privilégio de não haver outras farmacêuticas em Coimbra e beneficiava da proximidade à belíssima universidade da cidade e tinha todo o talento que queria. Depois começaram a ir uns para fora e a arrastar quatro ou cinco... Mas agora, com esta desregulamentação, com o teletrabalho, com o sentido de pertença à organização a esbater-se e a possibilidade de trabalhar daqui para fora mais facilitada (tendo o custo de vida de Coimbra e o salário de Berlim), é mesmo uma ameaça. Temos de pagar melhor, mas nem sempre o negócio o suporta, com a competição que há no mundo e com os investimentos que fazemos..."
Pedimos torradas, café duplo para mim e chá verde para ele e Paulo vai-me guiando pelo caminho que percorreu desde os seus 22 anos, quando a farmácia do avô, em Pedrógão Grande, foi posta à venda e ele cobriu a proposta mais alta, ficando com o balcão por sua conta ainda no terceiro ano da faculdade, onde conheceu a mulher, Ana Isabel, e os sócios com os quais montou a Bluepharma. O grupo, hoje um dos mais empreendedores e inovadores no setor farmacêutico, presente em quatro países (Espanha, Angola, Moçambique e EUA) e que exporta 88% da sua produção para mais de 40 localizações, começou ali mesmo na Farmácia Estádio, em Coimbra.
"Ao balcão, apercebi-me das dificuldades das pessoas em comprar medicamentos, que eram caríssimos e quando ficavam mais baratos apareciam outros melhores e mais caros. E apercebi-me do atraso português e convenci-me que tínhamos de trabalhar mais para recuperar à medida do que merecíamos neste país, que é magnífico." Foi essa semente que o levou a pensar em medicamentos genéricos - com a mesma qualidade dos de marca e menor custo, obrigando por isso também as multinacionais a baixar preços, com o bónus de ajudar a reindustrializar o país e poupar dinheiro ao Estado. Comprara já uma segunda farmácia, a cargo da mulher, e dedicara-se entretanto também às óticas. Mas o desejo de fazer diferente falava mais alto e à "obstinação" de fazer melhor somou-se a história que ouvia por onde passava, da Alemanha, à Bélgica ou à Suíça: grandes multinacionais que tinham começado em pequenas farmácias.
Nessa altura, abandonara já a ideia de ter uma rede de laboratórios de análises clínicas - seu primeiro projeto, já que sempre quis especializar-se num negócio que não ficasse preso às quatro paredes de uma farmácia. A ideia de seguir os passos do outro avô na Medicina, esquecera-a logo aos 14 anos, num dos muitos acidentes de mota que o levaram ao hospital. E pôs-se a pensar como podia pegar nos exemplos de fora e replicar o modelo em Portugal. Quando um dia, ao pequeno-almoço, leu no jornal que a Bayer ia vender a fábrica que tinha em Coimbra, viu o quadro compor-se. "Primeiro pensei: que chatice... ninguém quer trabalhar aqui. Mas depois veio a ideia irreverente: isto só acaba se ninguém arregaçar as mangas e aproveitar." Tinha 35 anos e pôs-se em campo, em busca de sócios, parceiros, investimento. "Sempre fui pelo associativismo - muito ativo na Ordem, na Associação Nacional de Farmácias, nas Misericórdias, acredito mesmo no poder disto até como modelo económico, os pequenos quando se juntam conseguem muito e com participação de todos. Nessa altura, falei com muita gente, soube que havia umas sociedades de capital de risco, atirei-me, fiz um projeto, contei a história do que queria fazer e mostrei o desenho. E o esforço foi reconhecido."
Os cinco sócios mantêm-se até hoje, e se o investimento na compra da fábrica, confidencia-me, foi "quase o valor de uma farmácia", o compromisso era bem mais pesado, mas também muito mais rico: "Assumiríamos os 58 postos de trabalho e a verdade é que esse know how fez toda a diferença."
Lembra a criação do SNS nos anos 60, fruto da vontade, do entendimento e do compromisso dos ministros dos Assuntos Sociais e da Economia, que permitiu também atrair operações industriais para Portugal, criar postos de trabalho qualificados, remunerar melhor e incrementar a qualidade na saúde. Esse "investimento estratégico foi a cana que nos deram para pescar". Associado ao conhecimento altamente especializado e qualificado na área ("um estudante de 18 é excelente, mas não entra em Medicina e acaba noutras disciplinas das ciências da vida") foi-se incrementando a qualidade da força de trabalho farmacêutica. "É o que precisamos nas empresas: rigor, conhecimento e redes internacionais."
Com a Bayer, foram precisos nove meses de negociação para nascer a Bluepharma, com um plano de phasing out de apenas três anos - "fazíamos a produção deles a 100% no primeiro ano, a 90% no segundo e a 60% no terceiro e depois virávamos para os nossos medicamentos. Chamaram-me louco, porque os tempos na investigação são longos, os investimentos brutais. E o pior nem é descobrir substâncias novas, é a obsessão com a segurança. Eu costumo dizer que os medicamentos não têm de ser bons, não podem é ser maus, tal a exigência de provar a segurança nos testes - e as empresas não arriscam, o que encarece os ensaios clínicos e dificulta o acesso à inovação", explica.
Hoje, 20 anos depois de criado, o grupo Bluepharma conta com 20 empresas e 800 pessoas, das quais 500 com licenciaturas. "Internacionalizámos muito bem e até começámos primeiro a vender lá fora - aqui ainda se discutia o benefício dos genéricos e já os alemães os usavam a 50% e nos EUA eram oito em cada dez caixas consumidas no ambulatório", conta. E nisso também pesou o tempo passado na cooperativa Farbeira, que ajudou a levantar do chão em três anos, automatizou, fez o turn around e transformou, com os seus sócios, numa das mais sólidas do país (hoje Plural, ainda dirigida por um deles). "Acreditei em mim e em quem estava comigo, com quem criei a Bluepharma."
Paulo marca a sua vida em períodos de dez anos - e diz que o problema das políticas públicas é que são desenhados para quatro, e em quatro anos "não se educa uma criança, não se faz uma cidade, não se constrói um projeto". No seu percurso, a primeira década foi dedicada ao turn around, à investigação, a encontrar parceiros. A segunda a consolidar. E nesta que é já a terceira ganhou coragem para voos mais altos. "Fizemos um PT2020, a que chamámos Acelera 2030 porque queremos acelerar. Temos equipas sólidas, uma empresa de ensaios clínicos, 130 cientistas em São Martinho, parceiros em todo o mundo, fornecemos 120 marcas de medicamentos... Investimos muito e agora estamos a atirar ao PRR." Sendo os genéricos uma área particularmente competitiva e Paulo um homem de desafios, a Bluepharma tem-se especializado nos mais difíceis medicamentos, onde há menos concorrência e mais valor acrescentado. Assim foi que há 12 anos arrancou com os medicamentos orais para cancro, muito dirigidos, muito ativos, mas muito tóxicos para quem os manipula.
O novo projeto, candidato aos fundos europeus - e que já passou a primeira fase "com nota muito boa" - passa por uma fábrica de medicamentos de alta potência na área oncológica, em Eiras, que entra em funcionamento neste ano; mas também por repensar a de S. Martinho, que "está a rebentar". Em causa estão "medicamentos caríssimos e que, sendo genéricos, podem ficar muito mais baratos", diz, explicando o processo. "Há seis anos, na lógica de avançar para coisas mais exclusivas - num projeto em que somos também business angels -, criámos numa das sete empresas que abrimos uma terapia de injetáveis, cuja tecnologia recuperámos para fazer injetáveis complexos. Temos o princípio ativo e o veículo de entrega do fármaco no organismo. Hoje, na área do cancro, há um portefólio fantástico, centenas de drogas, mas não são guiadas por GPS e são tóxicas, com efeitos secundários violentos... A preocupação de entregar o fármaco no local certo e na dose certa é o que nos move - e isto pode ser feito através de vírus dirigidos, ou por lipossomas, uma gotícula de gordura que leva o fármaco dentro e vai direta ao sítio em que o queremos aplicar. Até me comovi quando submetemos o projeto ao PRR, porque estava mesmo bem feito", confessa.
A ideia agora é industrializar em Coimbra, criar um centro de I&D especializado direcionado para estas formas muito recentes de tratamento, com um centro de transposição de escala ao lado e um centro de industrialização de medicamentos injetáveis complexos. O projeto ganhará vida numa área de luxo, outrora uma fábrica de cerâmicas que a Bluepharma adquiriu em 2019 e onde quer instalar um centro de inteligência que inclua também outras empresas com as quais possam estabelecer-se sinergias.
"O PRR, nestas 20 agendas mobilizadoras, teve 166 empresas a concorrer, o que é uma impressionante manifestação de interesse, que permite apalpar as instituições e medir a confiança para investir, mobilizando a economia, arrastando e envolvendo PME, centros de investigação e criando pequenos clusters. Passámos à segunda fase (são 66 projetos) e estamos confiantes." Conseguir levantar o Pharma Park é o sonho que alimenta, oferecendo também o seu know how a outros - "somos certificados pela FDA, no Brasil, na Rússia, na Coreia do Sul, e podemos preparar outras empresas; temos fármaco-vigilância e controlo de qualidade que podemos disponibilizar a outros; acredito que o mundo é cada vez mais da partilha: a alma do negócio já não é o segredo", sublinha.
Mas Paulo tem outras ideiazinhas que vão fermentando em áreas que nada têm que ver com a saúde - ou apenas toca a da alma. Aos fins de semana, é para o Alentejo que ruma, para ajudar a cuidar do projeto hoteleiro que fez nascer em Monforte, homenagem à mãe, "professora, designer de interiores e acima de tudo empreendedora", que um atropelamento matou prematuramente. "Eu tinha 40 anos e repensei a vida toda, queria uma segunda casa e procurei-a no Alentejo natal da minha mãe. Acabei por desistir de Santa Eulália, perto de Elvas, a conselho da minha mulher, minha grande parceira e apoiante de aventuras, e quando avistei a Torre de Palma tudo mudou. Lembrei-me de José Hermano Saraiva, que apontava aqueles 6 mil metros e dizia: "Esta propriedade, que dava um grande empreendimento turístico, está hoje entregue às cegonhas." E eu arregacei as mangas e transformei-a nisso mesmo: um hotel design 5 estrelas, projeto de autor do arquiteto João Mendes Ribeiro, onde também estamos a fazer vinho." Com Paulo Barradas atrás, o objetivo, claro, não poderia ser simples: a ideia é criar uma marca de produtos alentejanos de grande qualidade, alavancada no vinho e ter esse alavancado num monte com uma história que vai dos romanos à primeira ocupação do 25 de Abril, passando por D. Dinis e pela rainha Santa Isabel.
Com quatro filhos, entre os 30 e os 24 anos, e um "enorme orgulho na família - "eles são muito melhores do que nós", garante, contando que a mais velha é médica, a segunda psicóloga mas a dedicar-se agora ao turismo, a terceira jurista a trabalhar na área dos Direitos Humanos (na Guiné Bissau) e o mais novo acabado de formar-se em Farmácia, "todos muito ligados à igreja e aos Jesuítas, graças à formação no Centro Universitário José Manuel da Nóbrega, que fez deles pessoas extraordinárias" -, está já a aproveitar os netos. Ao "castiço rapaz" de dois anos, até já levou ao Jardim Zoológico e outros programas terá reservado para a neta recém-nascida.
O tempo que passa com eles pode não ser muito, mas é de grande qualidade. E tenderá a melhorar quando cumprir o desígnio que traçou: "Neste momento, trabalho para aos 60 ir à quinta-feira para o Alentejo, aos 70 à quarta, aos 80 à terça e aos 90 vir a Coimbra à segunda-feira", ri-se. Mas como estar quieto não é coisa que o ADN lhe permita, além da transformação brutal que quer imprimir ao grupo que lidera na área da saúde tem um novo projeto de hotelaria à espera de luz verde da câmara de Coimbra. "É um palácio do século XVII, a Quinta da Várzea, que comprei e estou à espera de autorização para avançar com o projeto, mas está difícil. Hoje é difícil fazer coisas... costumo dizer que fazer um galinheiro é do mais complexo que há, porque um vizinho queixa-se do galo que canta de madrugada, outro do cheiro, outro do lixo... são sinais dos tempos."
Nada que desanime Paulo Barradas, que não é homem de desistir, como me diz antes de nos despedirmos para regressar a Coimbra.