O embaixador que não se ajoelhou diante do imperador da China

No final do século XVIII, um embaixador inglês enviado à China recusou-se a curvar-se perante o imperador. Nove vénias ajoelhado, tocando com a testa no chão, não era coisa digna. Se não o fazia perante o seu soberano, não o faria perante outros. Resultado: a primeira missão diplomática e comercial à China falhou.
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Quando foi para a China como enviado do rei Jorge, George Macartney tinha 55 anos e já era um diplomata experiente. Tinha sido representante britânico na Rússia para negociar uma aliança com Catarina II, tinha sido governador de Granada e de Madras e até tinha recusado um convite para ser governador-geral da Índia. Embarcou no Lion sob o comando do comandante Erasmus Gower a 26 de setembro de 1792, com cerca de cem homens, e chegou a Pequim a 21 de agosto de 1793. Esta era a primeira missão diplomática britânica à China. Os objetivos? Apresentar os produtos que os ingleses poderiam vender aos chineses de modo a equilibrar a balança comercial, pedir permissão para navegar em novas rotas marítimas e para negociar em mais portos e mercados chineses e requerer autorização para uma embaixada permanente em Pequim. O enviado inglês estava otimista.

Os ingleses chegaram com o nariz levantado e um sentimento de superioridade perante uma cultura para eles praticamente desconhecida mas que lhes parecia pouco racional e científica. Os enviados dos países vizinhos - Tailândia, Vietname, Coreia - iam a Pequim sobretudo para fazer comércio, mas Macartney não era um negociante, era um diplomata e estava ali para negociar políticas mais vantajosas para o futuro.

Os outros embaixadores queriam cair nas boas graças do imperador Qianlong e, para isso, assim que se apresentavam faziam o chamado kowtow - um ritual de nove vénias ajoelhados (três séries de três), tocando com a testa no chão para mostrarem a sua humildade e reconhecerem a superioridade do imperador da China. Mas tal comportamento não era admissível para Lord Macartney.

Quando lhe explicaram como deveria agir quando fosse recebido, Macartney afirmou que se recusava a prostrar-se perante o imperador. Apesar da grande admiração que tinha pela prosperidade e pela civilização do império Qing, ele colocava Qianlong em pé de igualdade com o rei de Inglaterra e, portanto, com direito apenas à mesma demonstração de respeito que daria ao seu próprio soberano. Como Macartney nunca faria nada tão abjeto como o kowtow diante do seu rei, não poderia fazê-lo perante o imperador da China.

Cerimónia diferente para Estados iguais

Assim, pediu antecipadamente para ser dispensado dessa formalidade. Os funcionários chineses garantiram-lhe que era apenas "uma mera cerimónia sem significado". Mas o inglês insistiu que só realizaria o ritual se ele fosse recíproco: ou seja, se o funcionário chinês fizesse exatamente o mesmo diante do rei de Inglaterra (ou melhor, diante do retrato do rei Jorge que ele tinha consigo). Como isso não iria acontecer, Macartney propôs que houvesse uma cerimónia diferente para Estados considerados "iguais" à China (como a Inglaterra), que marcaria a diferença em relação a Estados menos poderosos (como a Coreia).

Nesse sentido, propôs inclinar-se sobre um joelho e baixar a cabeça perante Qianlong, tal como faria com o seu soberano. A proposta foi aceite. Macartney ficou satisfeito. Não só iria poder negociar de igual para igual, como todos os outros países da região iriam saber que deveriam respeitar a Inglaterra.

O encontro foi marcado para 14 de setembro, data em que havia outros enviados diplomáticos a serem recebidos pelo imperador. Todos fizeram o kowtow. Menos ele. O inglês entregou ao imperador uma carta do seu rei, com algumas propostas comerciais e de estratégia para o futuro. Tudo parecia estar a correr normalmente.

Mas Macartney não fazia ideia de quão profundamente tinha ofendido o imperador com a sua exigência. Já a 10 de setembro, Qianlong estava tão furioso com o ritual proposto pelo inglês e com as suas tentativas para prolongar a estada que emitiu um decreto avisando os seus funcionários de que não iria dar qualquer privilégio ao britânico. Eles poderiam oferecer-lhe os presentes que já tinham planeado e realizar as reuniões que já tinham sido marcadas, mas mais nada. O imperador tinha pensado permitir a Macartney ficar uns tempos na cidade Jehol mas, dada a "presunção" exibida pelo embaixador, decidiu não o fazer. Depois do banquete, teria um dia ou dois para embalar os seus pertences e partir. "Quando os estrangeiros vêm ter comigo são sinceros e submissos e eu trato-os sempre com gentileza", escreveu Qianlong. "Mas se vêm com arrogância, não recebem nada."

O britânico não se apercebeu mas, antes sequer do encontro, a sua missão estava condenada ao fracasso. A 3 de outubro recebeu a resposta de Qianlong à carta do rei Jorge: todos os pedidos britânicos foram rejeitados. O pedido para que um embaixador britânico permanecesse na capital foi considerado "não compatível com os costumes deste nosso império, e portanto não pode ser permitido". E as relações comerciais poderiam continuar a ser realizadas como até aqui. "Objetos estranhos e caros não me interessam... Nós possuímos todas as coisas", declarava o imperador. Que afirmava que não precisava de nenhum dos produtos que os ingleses tinham para lhe vender, embora a seda, o chá e a porcelana chineses fossem produtos essenciais para os britânicos e para outros povos. Compreendendo isso, a China permitia, há muito tempo, que os estrangeiros viessem comprar esses bens para "satisfazer as suas necessidades". A Inglaterra era apenas um dos países que faziam comércio com a China e, por isso, ele não poderia dar-lhe qualquer estatuto especial.

O enviado britânico foi convidado a partir quanto antes. As relações entre os dois países esfriaram, o que, eventualmente, iria dar origem à Guerra do Ópio, em 1840. Após a guerra, a China seria forçada a pagar uma indemnização à Inglaterra, a abrir vários portos ao comércio de ópio britânico e ainda a entregar a ilha de Hong Kong, que ficaria sob domínio britânico durante 155 anos. Por tudo isto, os historiadores consideram que esta missão de Macartney foi uma oportunidade falhada para ambos os países: a China poderia ter adquirido tecnologias e iniciado a sua revolução industrial; a Inglaterra poderia ter de facto equilibrado a sua balança comercial. Mas não aconteceu. Por causa de uma vénia.

A aproximação dos jesuítas

Ao contrário do britânico Macartney, houve outros ocidentais que não tiveram problemas em prostrar-se perante o imperador da China, a começar desde logo pelos jesuítas, a primeira ordem religiosa a estabelecer-se em Macau, um entreposto comercial português. A partir do século XVI, a Companhia de Jesus instala igrejas e colégios com o objetivo de espalhar a fé cristã e de divulgar a cultura ocidental.

Vindo de Lisboa, o missionário italiano Matteo Ricci chegou a Macau em 1582 e começou logo a estudar a língua e os costumes locais, estabelecendo importantes contactos com a nobreza e os intelectuais. A sua foi sempre uma abordagem de aproximação à cultura, que passava até pelo uso de roupas locais. Em janeiro de 1601, Ricci estabeleceu-se em Pequim e foi o primeiro europeu a entrar na Cidade Proibida, a convite do imperador Wanli. Ao contrário do embaixador britânico, nem Ricci nem nenhum dos outros jesuítas teve alguma vez problemas em se prostrar perante o imperador. Mesmo depois do édito de 1724, que expulsou os cristãos, os jesuítas foram autorizados a residir em Pequim e continuaram a ocupar lugares de relevo na hierarquia científica da corte.

Os cordiais embaixadores portugueses

Quando surgiu a proibição da difusão do catolicismo na China, o rei de Portugal, preocupado, tentou melhorar as relações luso-chinesas com o objetivo de manter a estabilidade da prática religiosa naquele país e assegurar os benefícios obtidos em Macau pelos portugueses. Foi por este motivo que D. João V enviou Alexandre Metel­lo de Sousa e Menezes à China. Chegou a Macau em junho de 1726, acompanhado por António de Magalhães e nove padres, levando na fragata Nossa Senhora d'Oliveira livros sobre Portugal e trinta arcas de presentes. No dia 18 de maio de 1727, a comitiva entrou oficialmente em Pequim. Aguardava-a uma receção preparada pelo imperador Yongzheng, formada por uma guarda de honra de duzentos soldados. Afinal, era o primeiro embaixador português a ser oficialmente recebido pelo imperador. Alexandre Metello estava preocupado em manter a honra do rei português e não se apresentar numa posição de humilhação, tendo feito algumas exigências (por exemplo, entregou pessoalmente a carta do rei) mas aceitou ajoelhar-se e tocar com a testa no chão, como era costume. O imperador concedeu-lhe quatro audiências, o que é sinal de reconhecimento. Mesmo que a missão não tenha conseguido obter os resultados pretendidos, nem na parte religiosa nem na parte comercial, os embaixadores que se lhe seguiram optaram sempre por manter a cordialidade - e o kowtow.

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