O elefante escondido no congresso do PS

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1. Não é Francisco Assis, não é Sérgio Sousa Pinto, nem Seguro, António Galamba ou Vítor Ramalho. Também não é a eutanásia, nem a canábis, tão-pouco a legalização da prostituição. Há um elefante escondido na sala do congresso socialista - e esse elefante tem seis patas e não voa. É o novo programa de Governo que, discretamente, os socialistas estão a negociar com o Bloco e o PCP, mas que o partido não é chamado a discutir.

Os temas são conhecidos. Avaliação da sustentabilidade da dívida externa. Elaboração de um plano nacional contra a precariedade. Estudo sobre pensões não contributivas, estrutura da proteção social e avaliação das medidas de combate à pobreza. Avaliação dos custos energéticos com incidência sobre famílias e propostas para a sua redução. Política de habitação, crédito imobiliário e tributação do património imobiliário. Política fiscal. É tudo isto e, cá para nós, cada tema dava para um congresso diferente.

Em qualquer destes temas, PS, Bloco e PCP têm linhas programáticas muito diferentes. Em muitos deles há espaços em branco, quer no programa de governo que foi votado nos órgãos do PS quer na Assembleia da República onde se estreou a "geringonça". É por isso que tudo isto devia ser importante para os militantes do PS, como é para todos nós. Mas não: nem no programa do congresso nem na moção de António Costa ao congresso se vê uma linha sobre o que aí virá. Nem sequer um lançar da discussão pública para medidas que, tanto quanto nos diz o governo, virão já no próximo Orçamento.

Agora veja bem a delicadeza dos temas: vamos ou não pedir uma reestruturação da dívida pública? Devemos ou não acabar com os contratos a prazo - mesmo em políticas ativas de emprego? Faz ou não sentido limitar as pensões não contributivas - como propunha o PS na campanha eleitoral e tanto criticava o Bloco? É ou não possível reduzir o preço da energia, mesmo que penalizando mais a EDP, que tanto se queixa da taxa sobre o setor? E o que é que vai mudar no crédito imobiliário (numa altura em que nem sequer há decisão sobre a aplicação da Euribor negativa, que é temida pelos bancos)? E, por fim, como vai ser com o IRS - baixa para uns e sobe para outros, ou há margem para só baixar?

Não quero desvalorizar as ditas matérias fraturantes ou a entrada de simpatizantes na direção do partido. Mas à primeira vista eu diria que qualquer um destes temas é mais importante para o futuro do que aquilo que se perspetiva para estes dois dias que sobram de congresso. E até mais importantes do que aquilo que Francisco Assis, Sousa Pinto e outros críticos também gostavam de poder discutir (aguardamos se conseguem). Seja isso a natureza do acordo com BE e PCP. Ou os últimos números do INE, que são tão pouco animadores que até a subida do consumo privado é muito derivada da subida dos stocks das empresas. Ou a banca, que a cada semana que passa parece ter mais problemas para resolver - muitos dos quais terão de passar pelas conversas com Catarina Martins ou com Jerónimo de Sousa.

2. Melhor ainda seria cruzar as duas partes da discussão. Lembram-se da confusão que está armada em França nas últimas semanas, com protestos, greves, falta de combustível? Tudo isso apareceu por causa de uma decisão do governo de Manuel Valls, que flexibiliza muito a legislação laboral. Isso: um governo socialista, mais um depois do de Itália, que olhou para a economia paralisada e achou que não havia solução senão seguir pela liberalização.

Por cá, PS e Bloco discutem mais rigidez num daqueles grupos de trabalho de que vos falei. E mesmo assim passamos de uma greve fechada (a dos estivadores, com proveito para os próprios) para uma outra que se anuncia nos aeroportos. E qual virá depois?

3. Dito isto, por muito que todos estes temas nos preocupem, é possível que daqui a umas semanas não tenhamos muito tempo para os discutir. Nesta semana apareceram várias sondagens colocando o "leave" à frente do "stay" no referendo britânico sobre a saída da União Europeia - que é já no fim do mês. Também nesta semana apareceu uma sondagem sobre as legislativas em Espanha (que vêm logo depois), que mostra a coligação Podemos/Esquerda Unida à frente do PSOE, o que pode colocar o nosso país vizinho à beira de uma enorme encruzilhada. Também por estes dias, vi algumas sondagens nos EUA a colocar Donald Trump acima de Hillary Clinton, rumo à Casa Branca. Basta que um destes fatores se confirme e podemos ver uma tempestade a passar por cima de nós.

Está difícil, este mundo. E talvez esse seja o maior problema desta inovadora coligação. Tinha mesmo de ser agora?

Diretor da TSF

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