O ecomártir
Faltavam 22 minutos para as onze da noite do dia 10 de Julho de 1985 quando se ouviu um enorme estrondo no porto de Auckland, Nova Zelândia. O Rainbow Warrior estava ali ancorado havia três dias e preparava-se para largar para Mururoa, na Polinésia, onde o governo francês tinha arrancado com uma série de ensaios nucleares. A noite estava fria e, ao ouvirem a explosão da mina submersa e presa ao casco do navio (que destruiu completamente a sala de máquinas), os 12 tripulantes, quase todos concentrados no convés, saltaram ou foram projectados para a água gélida e nadaram para terra firme. Todos excepto um. Fernando Pereira, o português que integrava a missão, decidiu descer rapidamente à sua cabina para resgatar o material fotográfico. Dois minutos depois, às 22h40, uma segunda bomba eclodiu no Warrior. Fernando bateu com a cabeça numa viga e desmaiou. Perante o olhar impotente dos restantes 11 companheiros, a embarcação afundou-se. No dia seguinte, o corpo foi encontrado com as fitas das câmaras enroladas nas pernas, um hematoma na cabeça e os pulmões cheios de água. A primeira vítima da causa ecológica morreu por afogamento.
Pouco passava das duas da manhã quando Bunny McDiarmind, directora da Greenpeace na Nova Zelândia, recebeu um telefonema de Martini Gotje, também ela tripulante do Rainbow Warrior. «Afundaram o navio e o Fernando morreu», ouviu pelo auscultador. «Eu fiquei chocada, não queria acreditar que uma coisa dessas pudesse ser verdade», recorda agora Bunny à nm. «Era absolutamente inacreditável que alguém tivesse acabado com um protesto pacífico de forma tão terrível. Podiam ter ligado para o barco dez minutos antes, avisar a tripulação para abandonar o navio. Mas não, os serviços secretos franceses autorizaram um assassínio a sangue frio, sem qualquer tipo de escrúpulos. Passados mais de vinte anos, ainda é muito difícil aceitar que nem toda a gente se tenha salvo. O Fernando não queria morrer pela causa, nenhum de nós queria que ele morresse pela causa. A sua morte foi completamente desnecessária.»
As repercussões da morte do fotógrafo português foram tremendas. O primeiro ministro da Nova Zelândia apressou-se a pedir explicações ao Eliseu, que começou por negar qualquer conhecimento prévio do atentado. Dias depois, numa praia próxima, foi encontrado um barco insuflável e um conjunto de equipamentos de mergulho idênticos aos utilizados pelos militares franceses. Um casal que foi visto várias vezes nas imediações do Rainbow Warrior foi detido: Sofie e Alan Turenge, que mais tarde veio a constatar-se serem na verdade Dominique Prieur e Alain Marfat, membros no activo da Direcção-Geral da Segurança de Estado, os serviços secretos franceses. Em poucas semanas, a Operação Satanic, como era chamada em Paris, foi desmantelada. Os dois operacionais confessaram ao tribunal serem culpados do homicídio do português e foram condenados a dez anos de prisão, dos quais cumpriram dois. O ministro francês da Defesa, Charles Hernu, demitiu-se. Vinte anos mais tarde, o governo gaulês admitiu inclusivamente que o presidente do país, na altura François Mittérrand, tinha dado o seu aval ao ataque. Foram pedidas desculpas públicas aos familiares de Pereira.
As relações entre França e Nova Zelândia estavam tão tensas que os Estados Unidos, o Reino Unido e as Nações Unidas decidiram intervir. Paris foi obrigado a pagar uma indemnização de 350 mil euros à família de Pereira e a pedir desculpas públicas à Nova Zelândia por ter atentado o território soberano do arquipélago. Por outro lado, não permitiu que os agentes detidos cumprissem a pena em Auckland e levou-os de volta a França sem o conhecimento das autoridades de Wellington. A Nova Zelândia protestou e o Eliseu ameaçou com um embargo das importações de gado neozelandês para a então Comunidade Económica Europeia. Os operacionais conseguiram por isso voltar a casa dois anos depois de terem sido detidos. Entretanto, já a Greenpeace baptizava outro navio com o nome Rainbow Warrior e prosseguia os protestos no atol de Mururoa. Um memorial a Fernando Pereira foi erguido no porto de Auckland. E, no vigésimo aniversário da sua morte, foi organizado um tributo onde estiveram organizações ambientais e representações diplomáticas de vários países. As declarações coincidiam todas num ponto: a morte do fotógrafo foi um dos pontos de viragem na luta ecologista. Globalizou o combate dos activistas. E pôs um sério travão aos actos de terrorismo de Estado contra eles.
O marinheiro de Chaves
Fernando Pereira nasceu em Trás-os-Montes em 1950 e cresceu com sede de mundo. Mas aqueles eram os tempos do Portugal salazarento e, para um rapaz novo sair da metrópole, só havia uma saída: combater nas colónias. Pacifista convicto, Fernando fugiu a salto para a Holanda. Chegou a Amsterdão em 1971, com o estatuto de refractário. Nesse mesmo ano, foi criada a Greenpeace. Pereira naturalizou-se, começou a estudar fotografia e entrou para os quadros da principal agência de notícias do país, a ANP. Colaborava frequentemente com a antecessora da agência Lusa, a ANOP. No final dos anos 70, alistou-se na Greenpeace. Peter Willcox, comandante do Warrior que foi afundado, conheceu-o nessa altura. «O Fernando era um pacifista, com grande consciência política. A única guerra que ele queria travar era esta, por métodos, tácticas e comportamentos pacíficos», disse dois anos depois da sua morte ao jornal neozelandês New Zeland Herald.
Pereira era casado com uma holandesa e tinha dois filhos, Paul e Marelle. A rapariga tinha apenas oito anos quando o pai morreu e as suas memórias mais fortes prendem-se com a despedida. «Ele disse-me que voltaria em breve e pediu-me para tomar conta da minha mãe», contou a rapariga, em 2005, à Greenpeace. «As minhas memórias dele nunca me abandonaram. O papá a levar-nos à escola, a conduzir um Alfa Romeo que adorava. Aos fins-de-semana íamos para fora, passear nas montanhas. Mas também me lembro de ele passar grandes temporadas fora, por causa do trabalho.»
No início de Abril de 1985, Fernando Pereira apanhou um avião na Holanda em direcção ao Hawai, onde se iria juntar à tripulação do Rainbow Warrior. Foi aí que a directora da Greenpeace neozelandesa, Bunny McDiarmid, o conheceu: «Um tipo simpático, sempre a contar piadas, falava muitas vezes sobre os filhos, óptimo companheiro para se viajar e um perfeccionista constante nas fotografias que fazia.» Bunny lembra-se da primeira acção conjunta: pendurar uma bandeira num radar junto à base de Kwajalien, nas ilhas Marshall. «Nós estávamos todos contentes porque tínhamos conseguido fazer aquilo sem ninguém nos impedir e ficámos no barco a olhar para a nossa obra. Às tantas começámos a ouvir uns gritos, era o Fernando a esbracejar muito e a mandar-nos sair do enquadramento. Na altura foi um momento hilariante.»
Uns dias depois, o Warrior aportou na ilha de Mejato, para recolher vários habitantes que estavam doentes por causa da radioactividade decorrente dos ensaios nucleares realizados no Pacífico. «Estávamos num cenário de contaminação mas o Fernando usava uns calções de ganga muito curtos e tinha as pernas à mostra. Era uma imagem um pouco estranha quando estávamos a recolher pessoas que estavam doentes por causa da radioactividade, mas ele era assim, um espírito livre.» No dia 10 de Maio, o Rainbow Warrior estava no atol de Rongelap, também nas ilhas Marshall, e Fernando fazia anos. Os companheiros fizeram uma festa-surpresa, ofereceram-lhe uma T-Shirt com a frase «Mudanças ao seu gosto» e assinaram-na com mensagens de felicitações. Bunny escreveu «Que tenhas uma vida cheia!»
Largaram das Marshall no fim do mês, rumo à Austrália. Daí seguiram para Auckland, precisavam de parar uns dias antes da missão no atol de Mururoa. Abastecer e reparar o navio, eram os únicos planos que a tripulação tinha feito na Nova Zelândia. Depois, as duas minas a eclodirem no casco e um corpo a afogar-se inconsciente na água. «Que tenhas uma vida cheia!» E ele teve.