O Duque: a real arte de roubar um quadro
Esta é para os fãs de James Bond: numa cena do primeiro filme da saga, Agente Secreto 007 (1962), Sean Connery está a subir um pequeno lanço de escada, no interior do covil de Dr. No, quando repara numa pintura a óleo exposta num cavalete à sua direita. Faz uma pausa, recua para ver melhor e a expressão no seu rosto dá a entender que aquele quadro lhe diz alguma coisa. O quê exatamente? Pois bem, trata-se do retrato de Arthur Wellesley, o primeiro duque de Wellington, uma obra do pintor espanhol Francisco de Goya (enfim, uma cópia), que havia sido roubada da National Gallery, em Londres, apenas alguns meses antes do lançamento do filme, desconhecendo-se à data o autor do crime. A piada sugestiva desses poucos segundos da cena é que o vilão Dr. No pudesse ser o homem procurado pela polícia... Mas o caso real é bastante mais improvável do que a ficção.
O Duque, última longa-metragem assinada por Roger Michell, que se estreou ontem em exclusivo no TVCine Top (em exibição no canal ao longo do mês), conta a história do verdadeiro responsável pelo mediático roubo de 1961, que não tinha nada de vilão. Tal como interpretado por Jim Broadbent, o sexagenário Kempton Bunton é uma personagem divertidamente fora de série. Um tagarela de bom coração, autodidata e aspirante a dramaturgo (motivado pela morte da filha), que prefere Tchékhov a Shakespeare (diz que o Bardo escreveu demasiadas peças sobre reis), e um idealista inveterado. A sua causa? Licença gratuita de televisão para os reformados. Isso mesmo.
Começamos por testemunhar o espírito combativo deste homem quando se recusa a pagar a dita licença, passando uns dias na prisão, sem que o suposto golpe de mestre lhe tenha ainda passado pela cabeça. No seu quotidiano simples em Newcastle, com uma tendência natural para ser despedido - vemo-lo primeiro como taxista -, Bunton vai ficando sem alternativas e acaba por assumir a postura de um Robin Hood, numa visita a Londres, onde transforma a indignação em ato: o quadro subtraído à National Gallery (único roubo ocorrido no museu até hoje) não é mais do que uma expressão de revolta pelo dinheiro público gasto para manter esse retrato do duque no Reino Unido, quando a mesma verba poderia ser usada para assegurar o acesso gratuito de TV a todos os reformados...
É uma deliciosa comédia criminal, fora de moda e apaixonada pelo retrato de época, aquela que Michell concebeu a partir de um episódio inimaginável, contando também com Helen Mirren no papel da esposa de Bunton, uma mulher-a-dias que tenta sustentar a casa e refrear a loucura revolucionária do marido, sem efeito. Raramente deparámos com Mirren num registo assim, tão modesto e contido, e por isso mesmo salta à vista a enorme capacidade que esta atriz-rainha tem de se converter numa doméstica desconfiada, entretida com agulhas de tricot e os nervos em franja.
A crítica britânica, que dedicou uma atenção especial a The Duke, inclusive por se tratar do último filme do falecido realizador de Notting Hill, não deixou de notar a afinidade desta pequena obra com os clássicos dos anos 1950 da Ealing Studios, uma das mais respeitadas instituições do país, que se distinguiu pelas comédias de humor tipicamente inglês. E de facto estamos perante um filme de sensibilidade popular, que consegue conjugar o gosto antiquado, a consciência social e uma nota explícita de sentimentalismo, com o orgulho de pertencer a uma velha escola caída em desuso. Veja-se a elevação do discurso de Broadbent/Bunton em tribunal, algures entre a sabedoria excêntrica e o talento cómico, que arranca risadas do júri e da galeria pública, sem travar uma lágrima no canto do olho. É um deleite puro e simples.
De resto, aquilo que é notável na aparência fofinha mas altamente calibrada de O Duque tem muito que ver com a própria ausência de uma marca autoral por parte de Roger Michell, que se mexeu bem dentro de uma linguagem pré-estabelecida. Um realizador que ao longo da carreira soube trabalhar géneros muito diferentes, preservando sempre a aptidão e uma quietude no meio do cinema britânico que diz menos sobre a voz artística do que sobre um ecletismo prático. E esse grau de competência é mais do que suficiente para valorizar a sua obra como um todo. Não é por acaso que Helen Mirren viu nesta inesperada despedida uma síntese perfeita de Michell: "É um maravilhoso derradeiro filme, porque carrega consigo todas as qualidades [dele] como cineasta. A sua técnica brilhante. A sua simpatia como pessoa. A sua admirável compreensão da vida e da humanidade", disse ao jornal The Guardian.
A mesma publicação que entrevistou o protagonista Jim Broadbent e quis saber que quadro, ou quadros, teria vontade de roubar, se não fosse apanhado: "Teria uma longa lista, mas na minha disposição atual, provavelmente um Bruegel. A Boda Camponesa ou Caçadores na Neve. Não um dos Bruegels mais parecidos com Bosch, mas um desses de pessoas reais a divertirem-se." Diz o ator que rouba qualquer cena com uma perna às costas.
dnot@dn.pt