O Dr. Estranhoamor no tempo de Trump

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No nosso dia-a-dia mediático, não poucas vezes, somos levados a reduzir o exercício do poder político a um conjunto de peripécias anedóticas protagonizadas pelos grandes líderes. Observe-se o caso óbvio de Donald Trump: gastamos (ou somos levados a gastar) mais tempo com as suas diatribes públicas do que a pensar as questões radicais que a sua performance arrasta. Por exemplo: que acontece na dinâmica dos próprios valores democráticos quando elegemos (os americanos, neste caso, mas a questão é universal) uma personalidade com o perfil de Trump?

Há muitas formas de linguagem que podem ajudar-nos a lidar com tal conjuntura. Do meu ponto de vista, o cinema continua a ser uma das mais ricas - e também das menos socialmente aplicadas. Nada disto decorre de qualquer pretensão de "intelectualizar" a relação com os filmes. Trata-se tão-só de discutir a visão mercantilista e lúdica (de um ludismo mercantil, convém esclarecer) que passou a dominar o mercado audiovisual, bloqueando o simples prazer de mantermos uma relação viva com a infinita pluralidade do cinema e da sua história de mais de um século.

Dr. Estranhoamor (1964), o lendário Dr. Strangelove, de Stanley Kubrick, pode ser um magnífico exemplo de tais virtudes cinematográficas - e tanto mais quanto acaba de reaparecer numa edição em Blu-ray (integra, aliás, um notável conjunto de uma dezena de clássicos lançado pela distribuidora Pris). Produzido em contexto de Guerra Fria, trata-se de uma sátira delirante, contundente e intemporal, sobre a utilização bélica da energia nuclear (no original, o título completo é "Dr. Estranhoamor ou: Como Eu Aprendi a Deixar de me Preocupar e a Adorar a Bomba").

Para a história, o filme ficou também como uma extraordinária proeza de Peter Sellers, interpretando três personagens emblemáticas: Lionel Mandrake, um exuberante oficial britânico, Merkin Muffley, o hesitante presidente dos EUA, e a figura central, Dr. Strangelove, ex-nazi e entusiasta da utilização da bomba atómica.

Entenda-se: a atualidade do filme não decorre de qualquer "comparação" maniqueísta, por exemplo fazendo equivaler a loucura atómica de Strangelove e os desastres democráticos de Trump. O que Kubrick coloca em cena é algo que, infelizmente, permanece atualíssimo. A saber: a diluição dos valores da democracia, a par da concentração de um imenso poder político (e militar!) nas mãos de alguns poucos cidadãos. Na sua vertigem burlesca, Dr. Estranhoamor é também um objeto de perturbante realismo.

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