"Foi o arquiteto, o engenheiro e o visionário da fundação" Gulbenkian

Entrevista a Artur Santos Silva, presidente do Conselho de Administração da Gulbenkian, sobre a importância de Azeredo Perdigão, nos 120 anos do seu nascimento
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Criada em 1956 por testamento de Calouste Sarkis Gulbenkian, é a maior fundação do país. Que tenha ficado em Portugal deve-se ao advogado português do magnata arménio. Artur Santos Silva, atual homem forte da Gulbenkian, fala dessa figura que amanhã será homenageada.

Azeredo Perdigão vai ser amanhã homenageado, nos 120 anos do nascimento. A Fundação Gulbenkian deve muito, muito, muito a este advogado?

Sem dúvida. Primeiro porque o fundador pensava ir para os Estados Unidos, mas encontrou duas pessoas que foram fundamentais para o levar a mudar de ideias e decidir ficar em Portugal. Foram Fernando da Fonseca, um grande médico que estava demitido de exercer funções docentes na universidade por razões políticas, e José de Azeredo Perdigão, um advogado extraordinário. Calouste Gulbenkian, com o médico, tinha um contrato muito interessante: pagava enquanto tivesse saúde; quando estivesse doente, não pagava. E, com o advogado, teve um diálogo muito intenso. Também gostou muito da cidade, naturalmente, e das pessoas. Ele era um homem muito discreto e encontrou um hotel pequeno que tinha um bom chef e, portanto, gastronomia de qualidade. Encontrou uma série de circunstâncias que o levaram a ficar, mas estas duas pessoas foram a meu ver decisivas.

Estamos a falar de Gulbenkian a vir de França.

Em 1942.

E a não ir para a América. Que era o destino da maior parte dos refugiados que passavam por aqui.

Ele veio para Portugal para ir para a América. Já era perigosa a deslocação, porque havia ataques a barcos não militares por parte dos alemães, mas o objetivo dele era esse. É unânime dizer-se que o Dr. Azeredo Perdigão foi decisivo para Calouste Gulbenkian ficar em Portugal - porque ele precisava muito, em termos permanentes, pelo tipo de negócios e envolvimento que tinha, quer como homem do petróleo quer como colecionador de arte, de um bom apoio jurídico.

O hotel de que falava era o Aviz?

Exatamente. Que era um pequeno hotel. Calouste Gulbenkian era um homem muito discreto e não gostava de vida social. Depois Lisboa tinha uma luz que, se calhar, lhe lembrava também a luz da sua juventude no Bósforo. Se se compreende que ele cá ficasse durante a guerra, o que é um mistério é porque é que ele permaneceu em Portugal até morrer, dez anos após o fim da Segunda Guerra Mundial.

Tem alguma ideia de como é que Azeredo Perdigão aparece na vida de Gulbenkian?

A ideia que tenho é que o embaixador Caeiro da Mata, na altura em Vichy, onde Calouste Gulbenkian estava como conselheiro da Embaixada do Irão, teve alguma influência na indicação do nome do professor Fernando da Fonseca e julgo que foi este que o pôs em contacto com o Dr. Azeredo Perdigão. Eram pessoas, aliás, com ideias próximas: democratas, progressistas, homens de mentalidade aberta.

Havendo esse historial de Azeredo Perdigão como homem da oposição e, de repente, é advogado de um magnata que se instala em Portugal, o regime não desconfia?

Azeredo Perdigão tinha uma educação republicana. E não só demonstrou sempre ser um republicano convicto, como uma personalidade muito ligada a todos os movimentos culturais da altura. Quer a movimentos modernistas, com Almada Negreiros e Fernando Pessoa, quer aos movimentos da Renascença Portuguesa, da Seara Nova, ou ao grupo da Biblioteca Nacional onde pontificavam Aquilino Ribeiro e Jaime Cortesão, a que ele ficou ligado desde o princípio. Mas era sobretudo um grande advogado e não era o regime que proporcionava às pessoas serem grandes advogados.

E em termos de protagonismo político, no pós-1945, Azeredo Perdigão estava ativo?

Tomou uma posição muito clara. Ainda antes das eleições presidenciais em que Norton de Matos foi candidato, já a Seara Nova estava identificada com a oposição ao Estado Novo, tal como a Renascença, ou o grupo da Biblioteca Nacional que já referi. O Dr. Azeredo Perdigão esteve sempre do lado bom na defesa dos valores superiores do homem. E em 1945, quando arranca o MUD e os aderentes foram obrigados a recensear-se, ele, que ainda não estava recenseado, foi extremamente contundente quando afirmou ao Diário de Lisboa: "Se isso é assim, vou já recensear-me. É lamentável que estejam a exigir que as pessoas declarem as suas convicções." É uma entrevista a contestar essa atitude do Estado Novo que, aliás, depois só serviu para demitir da função pública imensa gente de grande qualidade.

Estamos a falar de um grande advogado que tomou posição pública contra a ditadura. E, no entanto, assume a liderança da nova fundação. Salazar percebe que o país tinha a ganhar?

O que estava a ser oferecido ao país era extraordinário. Eu não conheço nenhum gesto desta generosidade em parte nenhuma, como aquilo que Calouste Gulbenkian fez em Portugal. Aliás, há um artigo interessante, no Daily Telegraph, quando ele faz antes uma doação muito importante de uma escultura ao Museu de Arte Antiga. É entrevistado e afirma: "Adoro oferecer estes presentes aos portugueses sobretudo porque estes nunca me pedem nada." O testamento, que permite que se crie uma fundação em Portugal, é algo de muito íntimo que se passa entre o fundador e o Dr. Azeredo Perdigão. E, com certeza, o Dr. Azeredo Perdigão influenciou da melhor maneira o que era a vontade do testador. A seguir, o Dr. Azeredo Perdigão discute com o Estado português o que é que deve ser o estatuto da fundação, se for criada em Portugal. Mas só teria sentido que ela estivesse em Portugal se lhe fosse proporcionado um estatuto adequado para estimular a que a fundação tivesse papel de grande relevo. Entre outras coisas, o que o Dr. Azeredo Perdigão negociou foram benefícios fiscais como aqueles que em muitos países são concedidos às fundações. É preciso recordar que a pessoa que estava prevista para presidente da fundação não era o Dr. Azeredo Perdigão mas um grande advogado inglês, Lord Radcliffe.

Houve condições impostas?

No diálogo com o governo, o Dr. Azeredo Perdigão viu definida a vontade de que a maioria dos membros do conselho de administração fossem portugueses.

Essa foi a condição.

Essa foi uma das condições. Lord Radcliffe tinha as maiores dúvidas que num país ditatorial, sem democracia e sem liberdade, fosse possível a fundação ser independente. E manifestou grandes reservas, mas, quando viu que a maioria dos administradores tinha de ser portuguesa e que a fundação tinha de ter uma atividade muito relevante em Portugal, demitiu-se.

E dá lugar ao advogado português.

É nessa altura que o Dr. Azeredo Perdigão emerge como candidato a presidente, porque os três executores testamentários da fundação foram o genro de Calouste Gulbenkian, Kevork Essayan, o Dr. Azeredo Perdigão e Lord Radcliffe.

E como é que se pode classificar esses quase 20 anos que há de fundação durante a ditadura? A fundação consegue gerir-se e ter o seu papel resistindo ao Estado?

Sim, sim. Basta olhar para muitos dos colaboradores da fundação, nomeadamente nas atividades diretas que a fundação tinha nas áreas da cultura, da educação, da ciência, para ver que a escolha das pessoas foi feita com a maior das liberdades. Naturalmente que, havendo o regime que havia, o Dr. Azeredo Perdigão foi tendo um tato extraordinário para levar a fundação para onde queria. Como toda a gente sabe, aquilo que mais nos condicionou foi a circunstância de o ditador Salazar não querer pessoas educadas. No princípio dos anos 1950, tínhamos mais de 40% da população analfabeta e 35% com três anos de escolaridade. E a aposta da fundação, desde a primeira hora, foi muito na educação, através do serviço de bolsas e do apoio a instituições de ensino, do estímulo à literatura, às bibliotecas populares, a bibliotecas itinerantes e mais tarde às bibliotecas escolares. Portanto, literacia para todos.

E como é que se dá Azeredo Perdigão quando chega a democracia em 1974?

Quando chega a democracia, o Dr. Azeredo Perdigão é uma das figuras mais prestigiadas da sociedade portuguesa e intocável, porque tinha contribuído, através da fundação, para que o nosso país se modernizasse. É logo convidado para o Conselho de Estado, onde esteve até ele ser extinto, que é quando, com o 11 de Março, há uma radicalização muito maior na sociedade portuguesa. Isto, aliás, coincide com transformações também muito importantes nos ativos do petróleo da fundação, porque nos anos 1970 inicia-se no Médio Oriente um processo de nacionalização total ou parcial das empresas em que o fundador tinha tido interesses, sendo a mais importante no Iraque.

Portanto, foi um período de reinvenção da fundação?

Em 1975 há outros problemas que surgem. Além de os interesses petrolíferos terem sido atingidos, também foram atingidos os interesses em Portugal, onde a fundação era investidora importante, como na Sacor. Mas, em relação à vida da própria fundação, realmente, em 1974-1975, houve uma situação agitada: dois administradores deixaram de exercer as suas funções, plenários intensos, com grandes extensões - a fundação já tinha mais de mil colaboradores. E o Dr. Azeredo Perdigão, com a sua diplomacia, foi encontrando soluções e a fundação passou praticamente incólume, com este sacrifício de dois dos administradores, de alguns diretores, um dos quais a própria mulher, a Dra. Madalena Perdigão, que era a diretora da Música.

Conte-me as suas memórias pessoais com Azeredo Perdigão.

O primeiro contacto que tive, ele já tinha muito prestígio. Eu, quando me interessei muito na campanha de Humberto Delgado, tinha 16/17 anos, mas fazia parte de uma família muito empenhada na oposição: o meu avô, o meu pai, os meus tios. E eu perguntava: "Mas não há propostas do que é que se deve fazer, para onde é que o país deve ir nas campanhas eleitorais?" E um grande amigo do meu pai, Manuel Mendes, chamou-me a atenção que, no tempo do Norton de Matos, tinha havido estudos notáveis e mandou-mos. E um dos estudos era do Dr. Azeredo Perdigão, um estudo jurídico demonstrando a inconstitucionalidade da maior parte dos diplomas que regulavam os direitos e as liberdades fundamentais. Depois, como estudante, eu fazia parte, em Coimbra, do CITAC, que deu um grande salto quando conseguiu ter uma revista e teatro de grande qualidade, modernos, tendo a Fundação Gulbenkian financiado a vinda de Luís de Lima para diretor e encenador, era então presidente do CITAC Emílio Rui Vilar. Mais tarde, no ano em que eu me formei, pensámos que era muito interessante ir visitar as prisões muito fechadas e prisões abertas, para delinquentes primários, sem grades. Queríamos ir ver à Alemanha as prisões fechadas e muito duras do regime prisional, mas o dinheiro era pouco e, então, fez-se um pedido à Fundação Gulbenkian. A fundação todos os anos financiava viagens de estudo.

Então, foi bolseiro da Gulbenkian?

Foi uma viagem de 15 dias mas que não teria sido feita se não tivéssemos o apoio da Gulbenkian. E, mais tarde, comecei a vir à fundação para assumir um grande debate. Eu estava a começar a minha vida bancária e assisti aqui a uma excelente conferência, moderada por Vasco Vieira de Almeida, entre Jacques Rueff e Guido Carli, duas notáveis figuras do pensamento financeiro da Europa. Mais tarde vim assistir a concertos, a exposições de pintura - a última em que estive aqui antes do 25 de Abril foi uma dedicada a Abel Salazar. Depois, eu estava no VI Governo Provisório, como secretário de Estado do Tesouro, e tive a ideia de lançar um grande empréstimo para subscrição pública para mostrar que a população acreditava no país e na democracia e vim falar com o Dr. Azeredo Perdigão.

A primeira conversa com Azeredo Perdigão é como governante...

Sim. Sendo eu secretário de Estado, tendo este sonho que era o de fazer uma grande emissão para subscrição do público - portanto, do país em geral - através dos balcões bancários, e não havia melhor aval do que a Fundação Gulbenkian ser um grande subscritor e haver uma cerimónia solene de subscrição por parte da fundação.

E aconteceu.

E eu conheci o Dr. Azeredo Perdigão. O Dr. Emílio Rui Vilar era vice-governador do Banco de Portugal. Eu pedi-lhe para ele organizar esse encontro e aqui vim, convidado para um almoço. Pus-lhe o problema e ele deu uma grande recetividade a essa possibilidade.

Falamos de um Azeredo Perdigão já homem de 70 e tal anos?

Quase 80.

Percebia nele as características que seduziram Gulbenkian?

Sim, sim. Era uma pessoa de uma grande vivacidade. Um homem muito simples, mas que irradiava saber, portanto, conhecimento e sabedoria, muito inteligente e com uma grande capacidade de adaptação às circunstâncias. E realmente exercia fascínio nas pessoas.

Amanhã fazem a homenagem e a inauguração do novo busto. É uma forma de a fundação dizer aos portugueses "não se esqueçam deste homem que é o obreiro de a Gulbenkian estar em Portugal"?

Claro. É uma oportunidade para lembrar aos portugueses que ele foi uma das maiores personalidades do século XX, em Portugal, uma das personalidades mais marcantes. E que atravessou - porque teve uma longa vida - todo o século. E sempre por cima, e sempre visionário, e sempre a olhar para a frente, aberto à mudança. Acho que é uma oportunidade de lembrar o que foi a vida deste homem, quer numa fase jovem quer na vida dele como grande advogado, um dos mais notáveis advogados e jurisconsultos do país, e depois como o grande obreiro da fundação. Na minha opinião, ele foi o grande arquiteto da fundação, o construtor e o visionário. Todos os grandes pilares da entidade da fundação foram criados com ele.

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