O Dothraki e o Valyrian tal qual se falam
Vão longe os tempos em que Hollywood punha Júlio César a falar inglês com o sotaque do Midwest americano de Marlon Brando. Ou em que Cristóvão Colombo chegava ao Novo Mundo e todos, "achadores" e "achados", se comunicavam nessa língua como se tivessem frequentado a Cambridge School. Para evitar este tipo de facilitismo, os autores da série Guerra dos Tronos desafiaram David Peterson a criar a língua do povo Dothraki, bem como os vários dialetos de Alto Valyrian. Ao longo de oito temporadas e 73 episódios, os vários milhões de seguidores da saga puderam, assim, habituar-se a duas línguas que não têm correspondência em qualquer idioma vivo ou morto na história da Humanidade. A tal ponto que existe hoje uma comunidade que se intitula fluente nas duas línguas.
Ao contrário do que possa parecer, não estamos diante de uma bizarria. Prova disso mesmo é o facto da Unbabel, plataforma portuguesa de Language Operations, sustentada por Inteligência Artificial (IA) (que, entre outra coisas, ajuda empresas a proporcionar uma experiência multilingue em escala), ter convidado David Peterson e a sua colaboradora Jessie Sams para uma muito participada masterclass online. O que, como nos diz Vasco Pedro, CEO da empresa, tem tudo a ver com a área em que esta habitualmente trabalha: "A missão da Unbabel é eliminar barreiras de linguagem. Um dos nossos projetos é o desenvolvimento de um interface cérebro/máquina que nos permita, por exemplo, ajudar pacientes de esclerose lateral amiotrófica. Uma das consequências desta patologia é o facto dos músculos irem deixando de funcionar, impedindo muitas vezes as pessoas de comunicar com o exterior. Uma das nossas ideias é recorrer a capacetes não muito diferentes dos usados nos eletroencefalogramas para captar sinais do cérebro, sem que a pessoa tenha de vocalizar o seu pensamento. Para isso teremos que transformar esses sinais numa língua."
Ao longo da masterclass, Peterson e Sams explicitaram os vários momentos de criação técnica de uma língua. Peterson, que se aventurou neste mundo ainda na adolescência quando criou uma língua nova para comunicar com a namorada da época, já trabalhou em grandes produções como The Witcher; The 100, Shadow and Bone, Motherland: Fort Salem, Doctor Strange, Thor, e Raya e O Último Dragão. Sams também co-criou línguas usadas em Vampire Academy, Paper Girls, Motherland: Fort Salem, entre outros. Mas no caso de Guerra dos Tronos, explicou David Peterson, "não partimos do zero. Pegámos em toda a informação, quer linguística, quer cultural, que nos é transmitida pelos livros de George R.R. Martin, em que se baseia a série, e tratámo-la em termos fonéticos e gramaticais. Foi muito mais complicado no caso do Alto Valyrian, que nos surge como uma civilização desaparecida e sobre a qual há pouco mais do que lendas e rumores."
Com efeito, ao contrário do que talvez se imaginasse, nada aqui é arbitrário ou fruto apenas da imaginação. Jessie Sams é professora de Linguística, ensinando quer História e Etimologia da Língua Inglesa, quer criação, em que os estudantes são convidados a desenvolver uma língua própria ao longo do semestre. David Peterson, por sua vez, formou-se em Linguística na Universidade da Califórnia e trabalhou durante anos na sua própria empresa de criação de idiomas, antes de ingressar no mundo da ficção televisiva e do cinema.
Contente com o resultado desta masterclass, Vasco Pedro, que estudou computação e linguística, "gostou particularmente da partilha de uma experiência como esta e perceber como estes auto-designados criadores de línguas trabalham, quais os métodos que usam e que obstáculos encontram. O facto de criarem uma língua para uma cultura imaginária torna tudo mais fidedigno e a nossa experiência de espectadores muito mais imersiva." Consciente das implicações que este tipo de trabalho pode ter para a sua área de trabalho, o CEO da Unbabel aposta em eventos em que a atenção ao universo criativo relacionado com as línguas e a linguagem é uma constante: "Temos promovido, na nossa sede, em Lisboa, um conjunto de palestras e de encontros com escritores, por exemplo. A relação entre estas áreas, a linguística e a criatividade, no caso a literatura, pode ser muito interessante para nós. Lança-nos muitas pistas." E acrescenta: "Queremos cada vez mais que a nossa sede, em Lisboa, seja um lugar de encontro aberto à comunidade e não apenas um escritório.
Para quem queira continuar a estudar as línguas faladas em A Guerra dos Tronos, refira-se ainda que David Peterson é autor de uma espécie de "Dothraki sem mestre", o livro Living Language Dothraki, ou ainda que é possível assistir às aulas que ele e Jessie Sams dão no canal de YouTube LangTimeStudio (em que também é possível aprender a criar a sua própria língua). Para já, fica aqui a primeira lição: "sönar amästan", que é como quem diz "o inverno está a chegar".
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