O divórcio complicado do Reino Unido
Enquanto o Reino Unido desencadeia formalmente as dolorosas negociações para se retirar do grupo principal da política e da economia europeias, a primeira--ministra Theresa May recusa-se a usar a palavra "divórcio" para descrever o que está a acontecer. A minha mulher, advogada de família e mediadora reformada, pensa que May pode estar correta. Afinal, a casa de família que estamos a abandonar contém ainda grande parte da nossa história e das pratas da família, bem como os nossos interesses económicos futuros. Nesse sentido, o divórcio dificilmente será uma opção.
A Grã-Bretanha não tem sido a ilha que algumas pessoas consideram ser, ou pelo menos não tanto como gostariam que fosse. Desde a nossa família real (que é alemã) às nossas exportações (na sua esmagadora maioria para a Europa), ajudámos a moldar o resto da Europa Ocidental, que, por sua vez, nos influenciou profundamente. Estamos separados apenas pelas 20 milhas (33 quilómetros) de água - por estes dias, umas 20 milhas aparentemente muito grandes - do estreito de Dover.
Então porque estamos de saída? A causa é uma mistura de frustrações e ilusões, impostura e obstinação. Estávamos fartos da incapacidade da Europa para enfrentar alguns dos seus maiores desafios - da competitividade à imigração - sem procurar reforçar os seus poderes centrais.
Além disso, os nossos líderes políticos têm, desde há anos, feito o jogo dos que são hostis à UE, ao parecer aceitarem toda e qualquer crítica feita à União, muitas delas arquitetadas em cima de falsidades. Recusamo--nos a ver-nos tal como somos: um país de tamanho médio que já não governa uma grande parte do mundo. Somos facilmente persuadidos de que não se pode ser um patriota sem se ser nacionalista.
Podemos e devemos gerir as consequências desta rutura sem trazermos ainda mais problemas para o nosso país. Mas o processo de separação até agora não nos permite acalentar grandes esperanças.
O referendo do brexit em junho passado foi em si um desastre. Uma democracia parlamentar nunca deve recorrer a tais instrumentos populistas. Mesmo assim, May poderia ter reagido à votação de 52% para deixar a Europa dizendo que iria entregar as negociações a um grupo de ministros que acreditavam nesse desfecho e, em seguida, no devido tempo, submeter o resultado das conversações ao Parlamento e ao povo. Em vez disso, ela transformou todo o seu governo numa máquina do brexit, embora pessoalmente sempre tenha querido permanecer na UE. O lema do seu governo é agora "brexit ou crise". Infelizmente, é provável que venhamos a ter ambos.
Então, o que vai acontecer a seguir? Ninguém faz a mínima ideia. Os seguidores põem-se em fila para se atirar do penhasco.
Sabemos que quase metade das nossas exportações vão para a UE, cinco vezes mais do que para toda a Commonwealth e seis vezes mais do que para todos os países do grupo BRICS. Porém, abandonámos o mercado único (a permanência exigiria que aceitássemos a jurisdição europeia e a livre circulação do trabalho) e a união aduaneira. Aparentemente, queremos um acordo de comércio livre com a UE nos nossos próprios termos, abrangendo as nossas principais indústrias e serviços.
O ministro dos Negócios Estrangeiros de May, Boris Johnson, argumenta que temos as cartas na mão nestas negociações porque os europeus querem continuar a vender--nos, por exemplo, Prosecco. Mas os ministros de May, de qualquer maneira, dizem que não é importante se não conseguirmos alcançar nenhum acordo. Limitamo-nos simplesmente a ir embora. Não haver acordo não seria necessariamente um mau resultado, insistem eles, porque o mundo está ansioso por fazer mais negócios connosco, o que será mais barato no futuro pois a libra continua num declínio constante.
Tudo isto, para regressar à palavra que May não quer usar, parece um divórcio pouco amigável. Cada reviravolta nas negociações será acompanhada de uma indignação xenófoba na ala direita do Partido Conservador de May e na imprensa sensacionalista à qual ela agora tanto deve.
Já é suficientemente mau que estejamos decididos a destruir a nossa economia, o que tornará os pobres mais pobres e até mesmo os empreendedores mais vulneráveis. Além disso, estamos a derrubar muitas das regras e convenções da nossa democracia parlamentar, que devem encorajar a busca de consenso e compromisso e evitar o modelo majoritário.
Apenas 52% dos eleitores britânicos tomaram a decisão de sair da UE em junho passado. O que eles votaram exatamente continua a ser um mistério. Mas as pessoas falaram, insistem May e os adeptos do brexit. Isso basta. Ignorem, dizem eles, o que os "inimigos do povo", os juízes nos nossos tribunais independentes, têm a dizer. Silenciem, gritando mais alto, qualquer ponto de vista que questione o que nos está realmente a acontecer. Ataquem a reputação de qualquer pessoa - empresário, político ou líder da sociedade civil - que seja a favor da permanência na UE ou de uma discussão aberta sobre o assunto. Digam à BBC que deve aceitar entusiasticamente o brexit ou enfrentará a ira popular. Acima de tudo, encerrem o debate parlamentar, tudo em nome do "restabelecimento da soberania parlamentar".
Este divórcio não está a correr bem. E o processo ainda está no início. Há um longo caminho pela frente. Sabe Deus que tipo de país teremos no fim desse caminho. Mas, como em qualquer divórcio, podemos estar bastante confiantes de que serão os filhos quem mais sofrerá.
( C ) Project Syndicate, 2017
Último governador britânico de Hong Kong e ex-comissário da UE para as relações externas, é reitor da Universidade de Oxford.