"O distanciamento da Igreja pode ter acelerado uma erosão que já estava em curso"
As pessoas já regressaram em pleno aos locais de culto?
Não existe nenhum estudo. O que é percetível advém da minha experiência quer com algumas lideranças religiosas, quer com algumas comunidades religiosas, e não só católicas. Penso até que precisamos de mais tempo para poder fazer um estudo desse tipo.
Mas estão a regressar?
Diria que, em particular no espaço católico, o regresso foi difícil. As pessoas não regressaram todas, antes de mais porque a lotação estava limitada, mas recordo que alguns párocos pensaram em multiplicar as missas para responder às necessidades dos fiéis tendo em conta as regras de distanciamento e essa necessidade não se verificou. Parte continuou a ter preocupações de segurança, em termos de saúde, que as levaram a limitar o acesso a este tipo de atividades.
Será um afastamento definitivo?
A religiosidade, como a que se vive na Igreja Católica, é muito marcada por uma herança cultural. A certa altura, este distanciamento vai conduzir a uma espécie de não-prática consumada. Eram praticantes relativamente ativos mas, na medida em que essa prática estava ancorada na manutenção de uma memória, e não tanto numa lógica vivencial, o distanciamento pode ter acelerado uma erosão que já estava em curso.
Acontece com outras religiões?
Falei com uma colega que estuda em particular o terreno protestante e a observação dela coincide com a minha. Parece haver claramente um regresso de grande parte das pessoas que frequentavam os espaços de culto, em particular nas igrejas com maior impacto demográfico (a católica e as evangélicas), mas uma parte não regressou de imediato, o que tem a ver com a perceção de insegurança. O que não se verifica apenas em relação à religião. Pode ser comparado com o lento regresso de outras práticas culturais, como a ida ao cinema, a concertos, embora tenham sido muito reguladas. É também certo que a Igreja Católica fez uma experiência assiva de deslocação de muitas destas práticas para as redes sociais, com transmissões live, descobrindo que lhes permitia chegar a outras pessoas. Há uma determinada periferia que, porventura, deslocou a sua relação para esse plano. Estou a pensar em pessoas de mais idade, com dificuldades de mobilidade e que se habituaram a acompanhar a missa através das redes sociais ou TV.
Substituíram a ida à igreja pelo acompanhamento à distância?
É verosímil pensar que haja uma periferia que se instale nesse novo tipo de sociabilidade, o que levantará novas questões à forma como as igrejas se vão relacionar com estas pessoas, que têm uma prática mediada por estas plataformas.
Significa que a pandemia abriu novas formar de comunicar?
Diria que trouxe remodelações. Observei com muita frequência algumas celebrações transmitidas nas redes sociais e a maioria dos comentários são de pessoas que não faziam parte daquela comunidade, mas que acabam por encontrar uma oportunidade de relação com aquela comunidade, aquele padre ou pastor. Vi comentários de portugueses na diáspora, que viram uma possibilidade renovada de manterem relações com a religião da "sua terra". Há uma remodelação que provocou e modificou as relações criando novos espaços de sociabilidade.
A pandemia também pode trazer novos participantes?
A religiosidade tem uma relação muito estreita com a experiência de vulnerabilidade, de sofrimento, que encontra no nosso sistema social dois grandes contextos: mais científico, de reposta da medicina, e a procura de bem-estar, o que mobiliza a experiência religiosa. Será interessante verificar se esta situação crítica pode ter um efeito inverso àquele que falei no início. O distanciamento pode acelerar um afastamento que já estaria em curso, mas é preciso considerar a hipótese que esta experiência possa ter desenvolvido uma necessidade do tipo religioso que dê resposta a essa experiência de vulnerabilidade.
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