O dilema de Merkel
Por variadas razões, fomos fixando os olhos nos últimos anos na Grécia, em Espanha, na Irlanda, na Hungria, no Reino Unido ou em França, quase sempre pelas piores razões: bancarrotas, impasses governativos, nacionalismos, referendos existenciais ou ataques terroristas. Nenhum destes problemas está ultrapassado, mas devíamos começar a prestar mais atenção à Alemanha, não pela lente focada no exercício da hegemonia continental, mas por uma grande angular ao caminho feito pela AfD (Alternativa para a Alemanha), à contração eleitoral do SPD e da CDU e aos dilemas de Merkel a um ano das legislativas.
A AfD tem três anos de vida. Neste percurso passou de opositora ao apoio financeiro a países da zona euro, liderado por Bernd Lucke, para uma mistura clássica entre xenofobia, protecionismo e radicalismo. Frauke Petry é o rosto da viragem, o que levou mesmo Lucke a sair do partido. E o sucesso da fórmula está à vista: a AfD passou a estar presente em dez dos 16 parlamentos regionais, com resultados históricos no passado março - segundo na Saxónia e terceiro no Bade--Vurtemberga e na Renânia-Palatinado - e neste mês de setembro: segundo no Mecklemburgo--Pomerânia Ocidental, estado rural do Leste alemão, empurrando a CDU para terceiro; e terceiro em Berlim, que mesmo sendo uma região mais liberal viu 98% dos eleitores da AfD confirmarem o voto apenas por protesto contra a política de imigração de Merkel. Se a dinâmica se mantiver, teremos dois novos sinais de alarme nas eleições regionais que restam até às legislativas do outono de 2017: Sarre, em março, e Schleswig-Holstein, em maio.
A primeira lição a tirar é que o eleitorado da CDU não estava preparado para a tolerância de Merkel ao longo da crise dos refugiados. No último ano entraram na Alemanha mais de um milhão de pessoas fugidas das guerras síria, afegã e iraquiana, expondo a total impreparação da concertação comunitária nas políticas de registo, acolhimento e asilo. Merkel ficou entre o dilema ético e o fardo político; entre a pressão da parceira CSU - quantas vezes mais próxima da AfD - e a abertura do SPD; entre a ausência de respostas coordenadas e a voragem soberanista por soluções desgarradas, desumanas e indignas. Merkel tentou liderar uma UE humanista mas o preço é demasiado alto: primeiro, a Alemanha não tem força suficiente para agregar o resto da Europa em matérias de segurança e direitos humanos; segundo, Merkel corre o risco de perder as eleições se insistir numa política moralmente certa. E é neste dilema das democracias sob pressão que os radicais metem o dedo. No final do dia o que conta mais para um líder político, manter-se no poder ou fazer o que a sua consciência lhe dita?
Mas o problema da Alemanha não se esgota no dilema de Merkel, que já sinalizou ser impossível manter a "porta aberta". E se esta posição vai influenciar outros Estados membros, reforçar o acordo com a Turquia e prolongar a agonia dos refugiados, não é líquido que trave o crescimento da AfD. Temos também assistido a uma fragmentação eleitoral capaz de mirrar o peso histórico dos dois grandes partidos, SPD e CDU. Por exemplo, no Mecklemburgo, SPD, Verdes e Die Linke têm agora maioria para governar, o que pode inspirar um modelo nacional pós-legislativas e dar menos estabilidade à Alemanha em comparação com a última década. Se assim for, o SPD tenderá a ser menos solidário na grande coligação até às legislativas e a cavalgar a marcha protecionista que, infelizmente, percorre os quatro cantos da Europa.
Como habitualmente acontece, os radicais prosperam por incompetência dos moderados. O SPD e a CDU, que há muito convergem na política europeia e nas principais reformas estruturais que o país foi levando a cabo ainda antes do grande alargamento da UE a leste, têm hoje a responsabilidade histórica de responder a três desafios: estancar perdas eleitorais sem cair na rede dos extremos; evitar mergulhar na instabilidade governativa; manter a Alemanha no topo da hierarquia da UE. Mas o pior é que poderão ter de fazer isto com Trump na Casa Branca e Putin no Kremlin, entrincheirando Berlim na UE e obrigando-a a errar mais vezes.
São muitas e ajustadas as críticas à forma como a Alemanha tem conduzido muitas dimensões da política europeia, da ortodoxia financeira aos excedentes comerciais, do menor institucionalismo à renacionalização de políticas que deviam ser comuns. Embora muitas destas abordagens não tenham nascido com Merkel nem sejam um exclusivo alemão, a verdade é que a chanceler não conseguiu inverter a perceção negativa sobre a unipolaridade alemã na Europa. Mas é importante olhar por outro ângulo: no momento em que as instituições se arrastam, a coesão está na rua da amargura, Paris eclipsou-se, Londres quer sair e Putin quer soprar as velas do fim da UE, o que seria desta sem a Alemanha? Como corajosamente lembrou, em 2011, o antigo ministro dos Negócios Estrangeiros polaco, Radoslaw Sikorski, ainda para mais neste delicado momento europeu, "tememos mais uma Alemanha fraca do que uma Alemanha forte". E ninguém conhece melhor as amarguras da história da Europa do que os polacos.