As persas são lindas e mesmo assim abusam da cirurgia estética, quem manda no país são só homens barbudos e de turbante, a América continua a ser o Grande Satã e não perdoa o sequestro da embaixada pelos revolucionários, a gasolina é mais barata do que a água. Usar clichês destes ajuda a atrair leitores, mas não faz justiça a nenhum país, muito menos um tão complexo como o Irão..Por exemplo, hoje celebram-se 40 anos da Revolução Islâmica, mas a civilização iraniana tem mais de 2500 anos. Alguém tem dúvida de que por muito que os acontecimentos desde 1979 tenham moldado o que o país é hoje, a alma da nação vai ainda buscar muito à força do Império Aqueménida, à beleza da poesia de Ferdusi (que resgatou o farsi da invasão de palavras árabes), à bravura desse Abbas I que expulsou os portugueses de Ormuz? Ou até aos esforços de modernização do último xá, cujo palácio é hoje visitável em Teerão, incluindo a sala onde jantou com Jimmy Carter, e no qual as legendas se limitam a identificar os objetos sem quaisquer comentários antimonarquia ou anti-América?.Visitei o Irão como jornalista em dezembro de 2017. Nestes 14 meses houve algumas mudanças, desde logo a denúncia pelos Estados Unidos do acordo sobre o nuclear iraniano e o regresso das sanções. Também houve protestos contra as condições de vida e os gastos exagerados nas guerras por procuração, e chegaram notícias de mulheres corajosas que tiraram o lenço do cabelo e o transformaram por minutos em bandeira de protesto. E Carlos Queiroz, de longe o mais popular português naquelas bandas, deixou de ser o selecionador iraniano de futebol..Já escrevi aqui no DN sobre os 20 anos da revolução de 1979, assim como sobre os 30 anos. A diferença agora é ter ido lá, mesmo que apenas a Teerão e a Ispaão, e poder ver tudo à vontade, desde a mesquita ao supermercado, e conversar com as pessoas enquanto bebia um chá de açafrão. OK! O Facebook estava bloqueado, mas o resto da internet funcionava. Bem, quando perguntava onde vivia o Guia da Revolução, toda a gente desconversava..Regressei a Portugal com várias certezas: o nacionalismo iraniano é fortíssimo, os iranianos querem uma abertura ao mundo, o regime dos ayatollas está sólido mas tem feito um esforço para se adaptar às exigências de modernidade da juventude e vai ter de evoluir muito rapidamente para sobreviver, um confronto com os Estados Unidos nem uma guerra com Israel não são desejados por uma população onde as ruas ainda estão cheias de homenagens aos mártires da guerra de oito anos com o Iraque de Saddam Hussein, iniciada logo após a queda do xá..Voltemos aos clichês do início: realmente há persas lindíssimas e, de facto, o penso que muitas jovens usam sobre a cana do nariz mostra a popularidade das operações plásticas. Nem todas as iranianas são bonitas, claro, mas sobretudo nem todas são persas. O país tem 80 milhões de habitantes e é um mosaico étnico, com os persas em maioria, mas as comunidades azeri e curda também numerosas; sim,tanto o guia da revolução, Ali Khamenei, como o presidente Hassan Rouhani são clérigos xiitas, de barba e turbante, mas há laicos no Parlamento e mesmo duas dezenas de mulheres e nos últimos anos anos tem sido comum algumas vice-presidentes; com Donald Trump, realmente, a América voltou a ser vista como hostil, muito diferente de quando Barack Obama era presidente, mas mesmo assim os iranianos sabem a diferença entre um governo e um povo e vi gente a beber Coca-Cola no Royal Adress, restaurante na moda em Teerão, outros a comprar livros de Hemingway na livraria Bookland (assim mesmo, de nome inglês) e sei que há filmes de Hollywood consumidos no recato do lar, mesmo que o cinema iraniano seja brilhante graças a nomes como Kiarostami ou Panahi..Quanto ao custo da gasolina, o clichê até corresponde à realidade, se pensarmos que um litro pode custar o equivalente a cinco cêntimos e que uma garrafa de água mineral é mais cara, mas Teerão ter-se tornado a cidade dos engarrafamentos monstruosos e o seu ar do mais poluído que há é um preço caríssimo a pagar pelo maná petrolífero que ajuda a economia iraniana a ser uma das 20 maiores se a medida for a paridade do poder de compra..O presidente Rouhani dizia ontem que o desafio à revolução era maior do que nunca, devido às sanções americanas. Trump, tal como Israel, insiste que o Irão está a tentar ter a arma nuclear. A espionagem americana garantiu ainda nesta semana que tal não está a acontecer e os países da União Europeia que patrocinaram também o acordo de 2015 mantêm-se crentes de que o nuclear será apenas para fins civis. Em simultâneo, Emirados Árabes Unidos, Turquia, Jordânia e Arábia Saudita também têm planos para construir centrais nucleares..A economia vai mal, com o rial a desvalorizar 70% no último ano e a inflação a atingir 35%. Rouhani diz que não é culpa do governo e sim das sanções, que impedem os investidores estrangeiros de apostar num mercado imenso. É em boa parte verdade, porque esses investidores estavam a vir até à decisão de Trump, fossem chineses, fossem os espanhóis da Adolfo Domínguez, de que vi lojas em centros comerciais de Teerão..Culpa do governo são sem dúvida os grandes gastos nas guerras por procuração, seja na Síria seja no Iémen. Na primeira, o apoio iraniano junto com o russo salvou Bachar al-Assad da rebelião, já na segunda Teerão tem de se esforçar pouco para que os houthis xiitas combatam os sauditas, tanta raiva lhes têm historicamente. Mas o continuado apoio ao Hezbollah no Líbano continua a ser a ação de política externa mais arriscada dos ayatollas, pois ameaça Israel, Estado criado em 1948 mas que Teerão insiste em não reconhecer..Não cheguei a ir a uma sinagoga no Irão, onde existe uma pequena comunidade judaica. Mas visitei igrejas e até um templo zoroastrista, onde o fogo eterno recorda que o masdeísmo foi a primeira religião monoteísta e maioritária até à chegada do islão no século VII com a conquista árabe. Fui também a uma mesquita, onde aprendi que num país xiita ninguém morre de fome. Todos os dias alguém reparte comida ou bebida em memória de um familiar falecido. Fartei-me de beber chá nessa incursão a um dos pequenos bazares..Sim, tal como não há Facebook, também não há álcool. Só está autorizado para a minoria cristã arménia. Mas se esta proibição em nome do islão é levada a sério, pelo menos nos locais públicos, já o cabelo coberto é como quem diz. A franja fica toda à mostra e o lenço, preso apenas numa espécie de carrapito, deixa muito do cabelo das persas à solta. E por muito que alguns fotógrafos se esforcem por retratar as iranianas de xador negro (voltamos aos clichês), o que eu mais vi foi cor nos lenços e uma arrumação sensual q.b..Para quem quer saber mais sobre este Irão sempre misterioso recomendo a leitura de Persépolis, nome da capital de Dario e Xerxes mas agora de uma deliciosa BD que também já é filme. E pela história de Marjane Satrapi dá para perceber como o regime pró-americano do xá Reza Pahlavi se tornara opressor, com a temível polícia política Savak, e a sociedade iraniana sonhava com liberdade. E como uma revolução que apesar de liderada por Khomeini chegou a ter comunistas e liberais envolvidos até chegar o momento de que todo o poder ficou nos ayatollas..Na viagem entre Teerão e Ispaão (lindíssima cidade de bazares, palácios e mesquitas), parei no mausoléu de Khomeini, um gigantesco monumento à saída da capital, aberto 24 horas por dia. Eram seis da manhã e havia gente a rezar. Num canto, homens dormiam, noutro, protegido por cortinas, eram mulheres quem descansava. Há visitantes de todo o país, e o Irão é tão grande como 20 Portugais, e uma atmosfera menos silenciosa do que esperava..Homens de metralhadora controlam as entradas. Meses antes o Estado Islâmico fez um ataque terrorista aqui, sunitas extremistas que odeiam os xiitas, um décimo dos 1500 milhões de muçulmanos no mundo e maioritários no Irão. Máquinas fotográficas grandes não entram, nascido o telemóvel é tolerado e assim também umas imagens discretas. Caminho até ao túmulo do pai da revolução, no centro, coberto por um pano verde e protegido por vidros. Inspira respeito. A figura de rosto duro continua um herói para muitos no país, mesmo que a maioria da população, todos os que têm menos de 30 anos, não o tenham conhecido, pois morreu em 1989..À saída, cruzo-me com um homem dos seus 50 anos. "Kapitalist", oiço. Pareceu-me agressivo o tom, mas prossigo. Foi preciso vir ao mausoléu de Khomeini para alguém me chamar capitalista. Conto à iraniana que vive em Portugal e faz de guia na viagem. Encolhe os ombros e sorri. "Esqueça, vamos aproveitar as horas na estrada para lhe contar mais algumas das 1001 histórias do meu país", diz Sépideh Radfar, professora de Estudos Persas que um dia se me apresentou em Lisboa como "uma iraniana que teve como amor da sua vida um português". Ah! Xerazade também é um nome persa.