O dia em que Kruschev denunciou Estaline para salvar o regime soviético
"É indiscutível que Estaline em inúmeras ocasiões deixou bem clara a sua intolerância , brutalidade e tendência para o abuso de poder (...), muitas vezes preferiu o caminho da repressão e da liquidação física , não só daqueles que eram adversários mas também de pessoas que nunca cometeram qualquer crime contra o partido e o Governo". Falando na sessão à porta fechada de 24 e 25 de Fevereiro do XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética (PCUS), Nikita Kruschev, depois de ter caracterizado naqueles termos o dirigente que o antecedera à frente do partido e do Estado soviéticos, prossegue o ajuste de contas com o homem de quem um dia dissera que "se Estaline diz para dançarmos, nós dançamos".
Perante uma audiência ora surpresa ora emocionada, o primeiro secretário do PCUS detalha os "métodos extremos " e a "política de terror" seguida pelo seu predecessor e na qual o próprio Kruschev colaborou activamente. Ele próprio admitirá "ter sangue até aos cotovelos" ao referir-se à época que denuncia perante os delegados ao XX Congresso, que reuniu de 14 a 26 de Fevereiro de 1956, em Moscovo.
"Como pôde isto suceder?", interroga-se Kruschev, que encontra a resposta no desvio "dos princípios leninistas" e na aplicação de "conceitos estranhos ao espírito do marxismo-leninismo". Mas, de facto, os casos denunciados por Kruschev configuram um exemplo clássico de luta pelo poder que se travará após a morte de Lenine, em Janeiro de 1924, entre Estaline e os "velhos bolchevistas" - os aderentes ao partido antes de 1917. Aquele emergirá vencedor, conseguindo liquidar todos os elementos que integravam o Politburo na época de Lenine.
No XVIII Congresso (1939), os "velhos bolchevistas" constituíam apenas 20% dos presentes, enquanto no XVII Congresso (1934) tinham representado cerca de 80% dos presentes. Como nota Kruschev, dos "139 membros e candidatos do Comité Central eleitos em 1934, 70% foram presos e fuzilados".
Após o XVIII Congresso, escreve Nicholas V. Riasanovsky (A History of Russia, 2000), "instalou-se uma ditadura pessoal (...) e, apesar de o Politburo permanecer como o órgão mais importante (...), existem inúmeros indícios de que, de facto, os seus membros obedeciam ao chefe", isto é, a Estaline.
Esta centralização de poder e os seus efeitos, aliados aos esforços de "elevar uma pessoa, transformando-a num super-homem com características sobrenaturais semelhantes às de um deus", afirma Kruschev, conduziram à "aplicação de métodos terroristas contra a população soviética" e "muitos trabalhadores tornaram-se timoratos, receando tudo o que fosse novo, temendo até a própria sombra e não mostrando iniciativa no seu trabalho".
Tendo de reconhecer "vitórias históricas" a Estaline, Kruschev insiste nos aspectos negativos dos últimos anos do seu antecessor à frente do PCUS e do Estado, sugerindo que, em mais de uma ocasião, a URSS esteve à beira de um conflito devido à centralização do poder num só homem.
Mas é precisamente a questão do poder que explica, em parte, as denúncias de Kruschev.
Após a morte de Estaline, em Março de 1953, começam a forjar-se alianças entre os membros do Politburo. Mas, escreve Moshe Lewin, "devido à incapacidade do Politburo de criar regras de jogo permanentes, com debates nos quais se exprimissem as diferentes opiniões, a que se seguiria uma votação e o ponto seguinte da ordem de trabalhos" (Le Siècle Soviétique, 2003), a luta pelo poder protagonizada por Kruschev, Georgi Malenkov e Lavrenti Béria vai reger-se por uma lógica herdada da época de Estaline, de quem todos os três foram próximos colaboradores. Numa primeira fase, Kruschev e Malenkov aliam-se contra Béria, o responsável da polícia política, que é preso e fuzilado. Na fase seguinte, Malenkov, um homem de confiança de Estaline e após a morte deste primeiro-secretário do partido, é afastado da chefia do Governo que dirigia desde 1953. Após o XX Congresso, é acusado de manter uma "facção antipartido" contra Kruschev e expulso em 1961.
Mas as razões de Kruschev não assentavam apenas na construção da sua legitimidade para dirigir a URSS, exibindo os erros e defeitos do seu predecessor. A concentração de poder em Estaline produzira, na opinião de Richard Sakwa, "o esvaziamento das instituições do Governo e do partido"; na economia "a inovação fora abafada, o sistema paralisara na fase da industrialização primária, impedindo a sua passagem para níveis mais sofisticados"; a sociedade vivia refém do gulag (Russian Politics and Society, 2002).
Para salvar o regime, havia que condenar Estaline. E foi isso que Kruschev fez há 50 anos.