O Dia D no DN: "Está a começar a grande batalha da Europa"
O desembarque dos aliados na madrugada de 6 de junho de 1944 nas praias da Normandia, que ficou conhecido como o Dia D e marcou a reviravolta na Segunda Guerra Mundial e o princípio do fim da ocupação nazi da Europa Ocidental, foi noticiado no próprio dia pelo Diário de Notícias, que lançou uma terceira tiragem para informar os leitores do início da "invasão da Europa".
Na primeira capa do DN desse dia, prévia às notícias do desembarque no norte de França, também havia novidades da guerra, mas referentes à invasão de Roma pelas tropas aliadas. Notícia que seria relegada para uma coluna diante das novidades da madrugada.
"Está a começar a grande batalha da Europa", lia-se num dos títulos da primeira página da nova edição que chegou às ruas de Lisboa. "Os exércitos anglo-americanos desembarcaram no norte da França", acrescentava-se noutro texto, ilustrado com fotos do general britânico Bernard Montgomery e do general Dwight Eisenhower, comandante-em-chefe das forças de invasão, que viria a ser presidente dos EUA.
Nos textos, citava-se uma agência alemã dizendo que "as forças germânicas atacaram barcaças de desembarque aliadas", assim como a Reuters, que confirmava os primeiros desembarques na costa norte da França. Lia-se ainda o comunicado oficial da invasão: "Sob o comando do general Eisenhower, forças navais aliadas, apoiadas por poderosas formações aéreas, começaram o desembarque no norte da França."
No meio do texto, surgia já a referência ao Dia D, citando a rádio Calais. "Este é o Dia D. Vamos agora tocar a música para as forças de invasão." A expressão era usada desde a Primeira Guerra Mundial, para assinalar a data de uma invasão quando não se queria precisar qual seria essa data, mas ficou intrinsecamente ligada ao desembarque na Normandia.
O DN escrevia na primeira página que as operações eram "as mais grandiosas de toda a história", alertando para a "muralha do Atlântico" que os alemães tinham vindo a construir desde a capitulação da França em 1940 para fortificar a costa norte de França. "Nunca um exército tão bem apetrechado e treinado como o que se encontra concentrado nas ilhas britânicas tentou uma operação anfíbia que se possa comparar à atual", lia-se elogiando-se também "o apoio de uma aviação como nunca existiu outra no mundo".
"Na precipitação com que se escrevem estas linhas no próprio momento em que as notícias afluem à nossa redação, pouco mais é possível fazer do que registar o acontecimento", lê-se no texto do Diário de Notícias. "Uma coisa se pode, contudo, dizer. A invasão da Europa começo e estão iminentes as grandes batalhas que os chefes das Nações Unidas têm anunciado nos seus discursos."
Na primeira página havia ainda dois mapas indicando onde estava a ocorrer o desembarque dos aliados, vindos de Inglaterra. Dizia-se que a invasão estava a acontecer na região do estuário do Sena até à costa ocidental da Normandia, com paraquedistas, barcaças e o bombardeamento do porto do Havre. Fotos do marechal Gerd von Rundstedt, comandante alemão nos países ocupados, e do marechal Erwin Rommel, comandante da defesa alemã no Ocidente da Europa, ilustravam também a primeira página de dia 6.
No dia seguinte, 7 de junho, o DN dava conta de que "os desembarques feitos numa larga frente foram bem-sucedidos" e que "nalguns pontos as tropas aliadas avançaram muitos quilómetros para o interior", citando as declarações do primeiro-ministro britânico Winston Churchill, no Parlamento. Dizia-se ainda que "os primeiros obstáculos foram vencidos", segundo anunciara Eisenhower, e referia-se o discurso do rei Jorge VI aos britânicos. "Enfrentamos a prova suprema."
As notícias da guerra ocupavam toda a primeira página, exceto uma pequena coluna que dava conta do início da venda dos bilhetes para a inauguração do Estádio Nacional, que seria a 10 de junho.
Além do sucesso relatado por Churchill, o jornal descrevia os acontecimentos da madrugada de 6 de junho de forma mais poética do que na véspera. "Na madrugada de ontem, quando os primeiros alvores do sol ainda não tinham rompido a bruma que cobria a Mancha e o mar do Norte, a grande frota de invasão das Nações Unidas largou das suas bases nas Ilhas Britânicas a caminho do continente europeu", começava o texto.
Dizendo que nos portos britânicos havia "soldados de todas as nações e de todas as armas", desde tropas especializadas até "antigos cowboys das pradarias do far west e genuínos parisienses de Montmartre operário e intelectuais", que formava "um imenso Exército a que estava reservado tomarem parte no maior empreendimento militar de todos os tempos".
"Para onde iam? Ninguém sabia. Mas ninguém ignorava que chegara o Dia D", dizia o texto, indicando que além dos soldados que partiam nos barcos para desembarcar no norte de França havia "grande azáfama pelos inúmeros campos de aviação do sul da Inglaterra" onde "as esquadrilhas preparavam-se para levantar voo". Levavam não só "as suas mortíferas cargas de bombas" mas "a luz velada que iluminava toda esta atividade divisava-se uma vez por outra rostos decididos de homens ajoujados ao peso dos paraquedas e das suas armas ligeiras".
O relato prossegue dizendo que a "gigantesca esquadra" ia a caminho e avançava em silêncio quase absoluto. "Mal se ouvia o ruído abafado dos motores e o espadanar das vagas contra as amuras". Em contraste, "no céu havia muito que se ouvia sem cessar o ronco potente dos motores de aviões" e, "de tempos a tempos soavam à distância explosões surdas", já que "havia algumas horas que as bombas caíam a uma cadência impressionante sobre as fortificações, as linhas de caminho de ferro e as estradas do norte da França".
Com a costa francesa à vista, "os navios de guerra aliados abriam fogo e toda a linha do litoral se iluminava com o clarão das explosões". E finalmente o desembarque: "Por fim, os primeiros barcos pejados de tropas acostaram às praias. Os soldados saltaram em terra", escreveu o DN, lembrando que com o clarear do dia os aviões aliados voavam baixo para lançar cortinas de denso fumo branco e ocultar outros barcos que continuavam a aproximar-se da costa.
O relato continuava na página 2 do jornal, dando conta das dificuldades de seguir para o interior. "Avançavam com precaução os sapadores à frente procurando localizar as minas. Atrás os infantes com as suas armas de forma estranha - as bazookas, espécie de canhão transportado por dois homens que dispara um projéctil capaz de perfurar uma forte blindagem, os lança-chamas, as cargas de demolição, os aparelhos de trasmissão radiotelegráfica, que hão-de ter o comando constantemente ao facto dos movimentos das suas tropas".
Em relação à preparação de vasta operação, o DN escrevia: "Tudo foi previsto, tudo tem o seu destino. Qualquer esquecimento teria consequências trágicas e por isso nada foi esquecido. Durante meses, todos os planos foram verificados e reverificados. Na hora da invasão, nenhuma espingarda terá falta de balas, nenhum soldado deixará de receber o seu rancho".
Num relato que parece idílico e de facilidades no desembarque do Dia D, não há referência a mortos -- terão morrido quase cinco mil militares só do lado aliado. No final do texto, faz-se contudo referência ao facto de a "defesa alemã opõe encarniçada resistência". Fala-se do arame farpado, dos "fortins" alemães que "há já algumas horas não cessavam de fazer fogo mortífero sobre os soldados aliados".
O texto, que não é assinado como era habitual na época, termina assim: "A vitória não está ainda à vista. Mas os soldados das Nações Unidas sentem já sob os seus pés a terra da França e sabem que começou a batalha decisiva que há-de abreviar o pesadelo em que o mundo vive há quase cinco anos."
O relato era ilustrado ainda na primeira página por uma imagem de soldados, com os navios ao fundo e a aviação nos céus, assim como por um mapa do desembarque.
As notícias de guerra continuavam nas páginas 4 e 5 do jornal, onde já se revelava que a invasão tinha sido adiada por 24 horas "em virtude das condições atmosféricas" e citava-se também o comunicado do alto comando alemão, que dizia: "Na noite passada, o inimigo começou o seu ataque contra a Europa ocidental preparado por ele e esperado por nós há muito tempo", indicando-se que "nas zonas costeiras atacadas travam-se renhidos combates".
Mas na primeira página de dia 7 o jornal reservou também espaço para dar conta do "êxito" da edição da véspera. "O nosso esforço em conseguir dar ao público ideia exacta da situação acompanhando a informação telegráfica com os primeiros comentários que ela suscitava, mapas dos locais de desembarque e fotografias dos comandantes das forças em operações obteve o maior êxito por toda a parte", lia-se.
Também se partilhava a carta de saudações do adido de imprensa da embaixada dos EUA ao diretor do jornal, Augusto de Castro. "Desejo felicitar pela rapidez e eficiência com que o seu excelente jornal pode levar ao conhecimento dos seus leitores a notícia da invasão aliada da Europa", escreveu Samuel H. Iams Jr., que como antigo jornalista quis "exprimir a sua admiração por um trabalho bem realizado".