Será que a maioria das pessoas sabe exatamente o que é a limpeza urbana? E de que forma isso contribui para o desenvolvimento da cidade onde vive? Ou para o bem-estar dos cidadãos? Qual o impacto na economia? Estes foram alguns dos tópicos abordados nesta conversa com Luís Almeida Capão, presidente da Associação Limpeza Urbana (ALU) - Parceria para as Cidades + Inteligentes e Sustentáveis e presidente do conselho de administração da Cascais Ambiente. Qual a importância da limpeza urbana (e recolha de resíduos) no desenvolvimento de uma cidade? A limpeza urbana é um motor para a transformação económica e social positiva das cidades. É uma condição que concorre para o aumento da competitividade, é um fator imediato de valorização, com capacidade para definir a boa ou má reputação de um lugar. Por exemplo, quando temos concelhos próximos com sistemas de limpeza urbana diferentes, fica sempre mais valorizada a cidade ou vila que tem uma gestão de limpeza urbana mais eficaz: é para lá que as pessoas querem ir viver. É inegável que a atração de talento e a retenção de pessoas qualificadas nas cidades melhora o funcionamento das instituições: cidadãos mais conscientes exigem serviços melhores. E depois é uma bola de neve: onde há talento, há empreendedorismo, há fixação de negócios, o que origina riqueza o que faz com que as cidades se desenvolvam ainda mais. Temos alguns exemplos, entre os Associados da ALU, que apostaram forte na limpeza urbana e hoje são considerados os melhores concelhos para viver ou têm um real poder de atração de jovens famílias. A limpeza urbana é sem dúvida um fator de valor acrescentado para as cidades, que tem um impacto na estrutura social, que aumenta o valor da propriedade privada e que oferece soluções inteligentes para a descarbonização do território. O impacto da limpeza urbana é também muito significativo no turismo e esta devia ser mais considerada num país como o nosso, em que 10% da riqueza gerada depende desta atividade. Esta capacidade de condicionar o valor reputacional e real das cidades é, aliás, um dos temas do próximo Encontro de Limpeza Urbana, que se vai realizar em novembro: Cidades limpas para Captar Negócios..Tem havido evoluções/inovações na forma como a limpeza é feita e nos equipamentos utilizados? Uma das originalidades da Associação Limpeza Urbana é ter criado uma rede colaborativa entre empresas e cidades, entre a oferta e a procura do setor. Do diálogo facilitado nascem muitas vezes soluções. O nosso serviço principal é oferecer às entidades públicas e privadas um trabalho de organização do setor, valorizando o que todos os dias acontece à porta de todos nós e a que nem sempre damos valor, dando notoriedade aos homens e às mulheres que trabalham neste setor. Essa alteração de paradigma é uma grande inovação. No que toca a evoluções tecnológicas, o último Encontro Nacional de Limpeza Urbana foi pródigo em demonstrações de produtos, tecnologias e software que tornam esta setor mais eficaz. Há varredoras 100% elétricas, deteção e georreferenciação por satélite de aterros ilegais, software de gestão de frota, sensorização de contentores, várias formas de interação com os munícipes, que vão de inquéritos de satisfação de um equipamento físico através do smart-phone à mobilização da cidadania para a limpeza urbana através de atividades específicas. Há neste setor uma oportunidade de descarbonização que vai ao encontro de uma melhoria da qualidade de vida das pessoas: a eletrificação. Se fizermos uma transição para soluções mais sustentáveis vamos ter menos emissões de CO2, menos barulho no cuidado do espaço público e, acima de tudo, uma integração com soluções inteligentes, na ótica das smart cities, para passarmos a ser mais eficazes e ambientalmente eficientes..Citaçãocitacao"O impacto da limpeza urbana é também muito significativo no turismo e esta devia ser mais considerada num país como o nosso, em que 10% da riqueza gerada depende desta atividade.".De que forma a limpeza urbana de uma cidade pode contribuir para a sustentabilidade da mesma, nomeadamente no que concerne à descarbonização? Quando um município oferece soluções práticas e confortáveis para as pessoas terem bons hábitos ambientais, está a atuar na prevenção. Se reforçar essa disponibilidade de serviços com formação e atividades de consciencialização cívica, consegue ter uma diminuição das necessidades de intervenção. O sistema de depósito de embalagens com incentivo, que estamos à espera de poder implementar a nível nacional, é um excelente exemplo de como uma política pública de limpeza urbana pode, efetivamente, contribuir para a descarbonização através da retoma efetiva dos materiais recolhidos em ótimo estado para a produção de novos produtos. Mas não só: através do sistema de incentivos, como o que foi testado em Cascais, há um reforço da separação correta das embalagens. As pessoas mudam de hábitos porque se sentem recompensadas pelos gestos corretos que fazem. É um sistema que ajuda a tomar consciência. Quanto menos desperdício houver e quantos menos resíduos estiverem fora dos circuitos corretos, menos necessidades as cidades terão de gastar energia para fazer mover varredoras e camiões que, mesmo que sejam elétricos, têm um custo energético. Num futuro ideal, poderemos transferir algumas verbas que hoje alocamos à limpeza urbana para outros fatores da descarbonização como o sequestro de CO2, através da plantação de árvores e aumento de espaços verdes, por exemplo, com consequências positivas para qualidade de vida das pessoas..As pessoas estão conscientes da importância e papel da limpeza urbana? Adorava dizer que sim, mas este trabalho foi pouco considerado durante muito tempo. Só em 2021 é que se publicou o primeiro estudo de caracterização do setor da limpeza urbana em Portugal e foi a ALU que o fez, tínhamos apenas um ano de existência. E ficámos a saber que a limpeza urbana tem um impacto anual de 468 milhões de euros na criação de Valor Acrescentado Bruto (VAB) para a economia portuguesa. E tivemos o primeiro perfil do trabalhador de limpeza urbana, entre outras carac- terísticas importantes para o setor e os seus trabalhadores se afirmarem como parte vital da nossa sociedade. Em todo o caso, a consciência ambiental das pessoas é cada vez maior. Se não acreditássemos que era possível mudar consciências e comportamentos, a ALU não tinha razão de existir. Um dos objetivos da ALU é dar instrumentos para que entidades públicas e privadas possam trabalhar em conjunto em campanhas de sensibilização e produzir cada vez mais conhecimento acessível a todos. Passando em simultâneo a mesma mensagem em vários concelhos do país seremos, de certeza, mais eficazes. A campanha #desembrulheonatal, criada para chamar a atenção para a problemática dos embrulhos fora dos contentores no dia 25 de dezembro, é um exemplo de como podemos trabalhar com economia de escala e reproduzir mensagens positivas que vão influenciar comportamentos..A limpeza urbana deve estar integrada na estratégia global de desenvolvimento de uma cidade ou pode ser avaliada e implementada como algo à parte? A limpeza urbana é indissociável da gestão da cidade, toca todas as partes, do turismo às árvores urbanas, dos eventos às praias, da mobilidade aos espaços verdes e ao urbanismo. E podia continuar. Quando falamos de limpeza urbana estamos a falar não só do cantoneiro que varre as ruas e despeja papeleiras, mas também das máquinas varredoras que limpam as ruas, dos cantoneiros que lavam as ruas mais sujas, da limpeza das praias, da limpeza de coletores pluviais, da limpeza de ervas nas ruas, da recolha de cortes de jardins e de objetos fora de uso, limpeza de dejetos caninos, entre outros. São todos serviços que melhoram a qualidade de vida nas cidades. Uma cidade limpa é uma cidade mais competitiva e o planeamento e a gestão destes serviços são feitos em consonância com a vida nas cidades. Por exemplo, a limpeza das praias não é feita quando as pessoas vão para a praia, é feita de madrugada. Por que se fazem muitas recolhas de resíduos de madrugada, nas cidades? Para evitar mais congestionamentos de trânsito. Tudo na gestão de uma cidade é interdependente e deve ser planeado em conjunto. A limpeza urbana tem de ter uma gestão profissional e de topo, aliada a ferramentas adequadas para as tarefas, com recurso a todas as possibilidades de gestão avançada e desmaterializada que hoje são possíveis. A melhor limpeza urbana é a que não se vê - isto é o sinal máximo de eficácia. E por detrás de uma limpeza urbana eficaz há processos de decisão que resultam de recursos humanos competentes, cidadãos empenhados, operações eficazes, tecnologias da informação eficientes e vontade política. Sem decisores políticos capazes de congregar todos estes fatores, não há política de ambiente no território..Na parte dos resíduos nota-se uma evolução positiva na separação feita pelos cidadãos ou é algo que ainda tem de ser trabalhado? Se consultar os dados da Agência Portuguesa do Ambiente verifica que essa evolução de que fala é pouco positiva, visto que a taxa de reciclagem do país é muito baixa ainda e que mais de metade do lixo que fazemos vai parar ao aterro. Num contexto de combate às alterações climáticas, diria mesmo que estamos na base do problema. É preciso reciclar mais e melhor. É preciso diversificar os sistemas de contentorização, ampliando a oferta junto dos cidadãos. Ou seja, não bastam os comuns ecopontos na rua, temos de disponibilizar mais ecocentros nas cidades, com múltiplos fluxos, e avançar com a implementação do Sistema de Depósito de Retorno, cujos projetos piloto desenvolvidos em Portugal estão a mostrar ser muito eficientes para as embalagens de bebidas. A sensibilização ao cidadão tem de continuar. No entanto, acreditamos que é necessário também reforçar a fiscalização e aplicação de coimas a quem não colocar os resíduos no local certo..Quais os principais desafios que a limpeza urbana (e recolha de resíduos) enfrenta atualmente? Os serviços têm de ser mais eficientes e os cidadãos mais responsabilizados pelos seus atos. Sabemos que a limpeza urbana custa em média 30 euros por ano a cada português, mas esse valor pode e deve ser mais baixo. A inovação tecnológica pode ajudar-nos a definir melhores rotas para as varredoras mecânicas ou pode indicar-nos quando as papeleiras estão cheias (evitando km e emissões desnecessárias), por exemplo. Por outro lado, se as pessoas limparem os dejetos dos seus cães, não deitarem lixo para o chão, por exemplo, o município não tem de limpar, podendo alocar os recursos humanos e financeiros para outras atividades. Não queremos centenas de máquinas e trabalhadores nas ruas a limpar freneticamente, queremos e acreditamos que a limpeza das cidades passa não só por serviços mais eficientes, mas também por cidadãos mais conscientes e ambientalmente responsáveis..Citaçãocitacao"A taxa de reciclagem do país é muito baixa ainda e mais de metade do lixo que fazemos vai parar ao aterro. É preciso reciclar mais e melhor.".O que pode fazer o governo, o poder local e o cidadão individual para proporcionar uma melhor limpeza urbana? O governo pode criar mecanismos que permitam acelerar e melhorar a atividade deste setor. É um setor que necessita de formação especializada ao nível da gestão e dos quadros técnicos, e o governo pode alocar financiamento para esta formação. O que vemos nos encontros nacionais, nos webinares, na informação que produzimos é que os profissionais estão sequiosos por saber mais e de forma sistematizada. A ALU tem um plano de formação que já apresentou ao governo anterior e que pode ser posto em prática assim que haja vontade. Há outras questões relacionadas com a atividade dos municípios e das empresas do setor da limpeza urbana (venda de equipamentos como camiões, varredoras, contentores, serviços associados ou consultoria ambiental) que o governo pode solucionar. A questão da reciclagem das águas residuais para lavagem das ruas, que se tornou num processo difícil e burocrático, com a legislação presentemente em vigor. O governo precisa de simplificar os processos de análise das águas tratadas de forma a que não se desperdice água potável na lavagem da via pública. Ainda para mais, todos os invernos antecipamos anos de seca sucessiva, mas sabemos que as condições se vão agravar cada vez mais. Temos questões relacionadas com os impostos sobre os combustíveis e os aditivos que deviam ser ponderadas, como a possibilidade de uma distinção na lei para veículos que prestam serviço prioritário à sociedade. O impacto dos preços dos combustíveis é enorme na atividade dos nossos associados e o governo podia dar mais atenção a esta questão. Nem os concelhos mais prósperos do país, como Lisboa, Porto ou Cascais podem fazer face, individualmente, a estas questões..O governo pode, através da ALU, evitar que se mantenham 308 políticas de limpeza urbana criando uma estratégia concertada entre todas e promovendo o conhecimento e experiência de uns em prol dos outros. Pensar o país como um só. Nomeadamente, a questão da descentralização de competências, não esquecendo o PRR e a responsabilidade alargada dos produtores, por exemplo, no financiamento das atividades de limpeza urbana, dos produtos que colocam no mercado e vão parar ao chão ou às praias por exemplo. Algo em que já estamos obviamente a trabalhar com afinco, como sempre. A nível local, autarquias e cidadãos têm de ter uma relação de proximidade, têm de fazer parte da mesma equipa. As câmaras municipais não podem dedicar recursos sem fim à limpeza urbana: precisam de ter meios, recursos humanos, bom planeamento, boas estratégias. Mas nem o concelho mais rico do país consegue ter as ruas impecáveis se não tiver munícipes conscientes, que se sintam parte da comunidade e que, por isso, cuidem do espaço público tão bem como das suas casas..dnot@dn.pt