O desenho que mudou a Dinamarca
ESTÁ UM HOMEM SOZINHO, sentado numa sala e, apesar do dia brilhar magnífico, tem as persianas corridas e as janelas trancadas. No corredor contíguo está outro homem, um funcionário dos serviços secretos, que não afasta – nem por um segundo – os olhos dele. No jardim, três polícias vigiam toda a habitação através de um sofisticado sistema de videovigilância. E cá fora, outro agente espia a zona envolvente à casa. O homem que está sozinho na sala chama-se Kurt Westergaard e, há cinco anos, desenhou uma caricatura de Maomé com uma bomba no lugar do turbante. Desde então, tornou-se prisioneiro no seu próprio domicílio, não dá um passo que não esteja acautelado. «O momento mais alto do meu dia», diz-nos, «é quando os agentes mudam de turno e eu tenho uma cara nova com quem falar.»
No dia 30 de Setembro de 2005, o Jyllands Posten, um jornal conservador de Aarhus, segunda maior cidade dinamarquesa, publicou uma dúzia de cartoons do profeta Maomé na página dois do suplemento cultural de sexta-feira. Foi Flemming Rose, o editor de Cultura, quem encomendou os desenhos aos artistas. «Duas semanas antes, Kaare Bluitgen, uma escritora de livros infantis, tinha dado uma entrevista a outro jornal em que explicava as dificuldades que havia tido para encontrar um ilustrador para o seu novo trabalho, O Corão e a Vida do Profeta Maomé. Três artistas recusaram a proposta e só um quarto decidiu aceitá-la, mas sob anonimato», contou Rose à imprensa quando a polémica estalou. «Na altura pensei que havia um clima de autocensura e era preciso combatê-lo. Avançámos com a publicação.»
O desenho de Westergaard era o mais forte, demonstrava uma crítica feroz à violência no mundo muçulmano. Houve reacções imediatas, com os líderes religiosos a levantarem-se em protesto e 11 embaixadores de países árabes a pedirem uma audiência ao primeiro-ministro, para discutirem o que consideravam «uma campanha notória nos círculos públicos dinamarqueses contra o islão». Rasmussen recusou. Os principais imãs do país partiram então em viagem de sensibilização pelo Médio Oriente, o que levou a que, em Dezembro de 2005, a Organização da Conferência Islâmica emitisse um comunicado em que pedia à ONU que impusesse sanções diplomáticas à Dinamarca. A maioria dos países islâmicos começou a boicotar os produtos do país escandinavo. E a violência estalou logo em Janeiro, quando a revista norueguesa Magazinet decidiu reproduzir as mesmas caricaturas.
Para a memória colectiva ficaram as imagens dos protestos na Faixa de Gaza e na Cisjordânia, com jovens palestinianos a queimarem bandeiras da Dinamarca. As manifestações alastraram num ápice a todo o mundo islâmico. As embaixadas do país na Síria, no Líbano e no Irão foram incendiadas. Mais de cem pessoas foram mortas pelas autoridades quando protestavam contra os cartoons na Nigéria, na Líbia e no Afeganistão, acirrando ainda mais os ânimos. Um ministro do estado de Uttar Pradesh, na Índia, prometeu uma recompensa de oito milhões de euros a quem «arrancasse a cabeça ao ilustrador dinamarquês». Um líder talibã veio a público dizer que as tropas dinamarquesas no Afeganistão eram o alvo primário das suas tropas. E as ameaças de morte começaram a cair na redacção do Jyllands Posten como chuva em Abril.
Nos últimos cinco anos, a Dinamarca teve de aprender a viver com medo. E ninguém mais do que Kurt Westergaard, que ainda em Janeiro deste ano viu um homem entrar-lhe em casa com um machado na mão para o matar. Não sofreu qualquer ferimento porque conseguiu esconder-se a tempo numa sala de pânico que os serviços secretos haviam construído para si [ver caixa]. «Há muito que deixei de pensar se voltaria a fazer este cartoon. Está feito e não há nada a fazer. Mas acredito na liberdade de expressão e sei que, se não fosse este cartoon a provocar a crise, seria uma pintura, um filme ou um artigo no jornal.» Diz-se apenas um rosto para a polémica e depois destila ironia: «Sabe quanto ganhei por fazer esta caricatura? Cem euros e muitas mais dores de cabeça.»
Um jornal com vedação
A maior parte dos jornais na Dinamarca tem as redacções no centro das cidades, bem no eixo dos acontecimentos. Em Copenhaga, o Jyllands Posten não podia ter uma localização mais central, em plena praça do município. É apenas uma delegação, mas está vigiada constantemente por cinco polícias, ninguém entra sem autorização e nenhuma pessoa pode abrir uma porta sem um cartão especial de acesso. É obrigatório entrar acompanhado e nós subimos com Peter Ernstved Rasmussen, o editor da secção de Política Interna.
«Havia uma loja do jornal aqui por baixo, contígua a uma livraria, mas depois da publicação das caricaturas foi levantada uma parede para impedir alguma entrada indesejada», esclarece o jornalista. As portas são blindadas, os vidros são inquebráveis e é necessário esperar que uma porta feche para que outra se abra. «Em 2007, a polícia deteve um grupo que preparava um atentado à bomba contra o jornal, por isso sabemos que a ameaça não é ilusão nenhuma. Não deixa de ser estranho que os instrumentos da liberdade de expressão tenham de estar tão vigiados.»
Em Aarhus, a trezentos quilómetros da capital, fica a sede do Posten e ali as medidas de vigilância são ainda mais apertadas. O edifício – uma série de pavilhões que encaixam uns nos outros com inúmeras saídas para a rua – tem agentes da polícia de intervenção em todo o perímetro, mas foram levantadas paredes e isoladas algumas zonas para impedir qualquer falha na segurança. «Há gente dos serviços secretos dentro e fora do edifício», garante Uffe Cristiansen, chefe de redacção. «Para “comemorar” o quinto aniversário da publicação dos cartoons, estamos a construir uma vedação electrificada. E isto para não falar do novo edifício que vamos construir junto ao porto, que deve estar concluído num par de anos e parece uma fortaleza. Ora, nenhum jornalista quer trabalhar numa fortaleza.»
Os repórteres do Jyllands Posten sabem que o seu trabalho ficou mais difícil depois da crise que os desenhos abriram. Rasmussen, que escreve frequentemente sobre imigração, lamenta a dificuldade em conseguir fontes na comunidade islâmica. «Normalmente não somos bem-vindos», admite. Cristiansen também conta uma história: a correspondente do diário no Paquistão não conseguiu renovar o visto para trabalhar no país. «Somos o jornal mais internacionalista na Dinamarca, mas as dificuldades em contar o que se passa no mundo árabe é um problema. Muitas vezes, por exemplo no Iraque ou no Afeganistão, somos obrigados a contratar jornalistas freelancer.»
Em abono da verdade, as vendas do jornal resistiram à crise. «Perdemos muitos leitores, que escreveram cartas indignadas. Mas ganhámos outros, que se identificaram com a atitude que tomámos», diz Uffe Cristiansen. A tiragem actual do Posten é de 128 920 exemplares durante a semana e 173 503 ao fim- de-semana. Números muito semelhantes aos de 2005. «A diferença é que hoje deixámos de ser um jornal que ninguém no mundo conhecia para passarmos a ser um jornal sobre o qual toda a gente tem uma opinião.»
Insulto ou liberdade de expressão?
Norrebro é o maior bairro muçulmano da capital. As ruas cheiram a kebab, quase todas as mulheres usam véu, muitos homens envergam turbante. Aqui há inúmeras mesquitas e, cinco vezes ao dia, é possível ouvir o Azan, chamamento para a oração. Há dez anos, tornou-se um local da moda. Começaram a abrir lojas de design, clubes nocturnos e cafés, livrarias e lojas de antiguidades. Não há geografia mais cosmopolita nem mais multiétnica em Copenhaga. E ainda assim, no dia em que a Dinamarca foi eliminada do Mundial de Futebol pela selecção nipónica, as ruas e os cafés de Norrebro encheram-se de bandeiras do Japão.
Explicará a crise dos cartoons a pequena provocação? Nina Friis, activista da organização não-governamental Peace Watch, que se opõe à presença militar dinamarquesa no Afeganistão, acredita que o exemplo não é mais do que uma reacção a uma provocação. «O discurso anti-islâmico estava a crescer na sociedade até 2005, estava na moda. E os jornais, ao invés de assumirem a sua responsabilidade de travar qualquer forma de xenofobia, deram-lhe voz. Graças a isso, hoje temos uma sociedade mais intolerante, de parte a parte.»
«A Dinamarca tem liderado o extremismo anti-islâmico na Europa», reforça Abdul Wahid Pedersen, imã em Norrebro, nascido dinamarquês em 1954 e convertido ao islão em 1982. Tem barba loira e olhos verdes e um discurso ríspido. «Penso que há um plano organizado para expulsar os islâmicos da Dinamarca. Ofender a nossa comunidade faz claramente parte desse plano. Todas as pessoas de bom senso sabem que, nesta religião, as representações visuais de Maomé são de uma gravidade extrema. Ao insultarem-nos a este ponto, os nossos jovens começam também eles a ter pensamentos extremos e a fazer coisas extremas. Isso não é bom.»
Pedersen lidera uma organização chamada Muçulmanos em Diálogo e é tido nos círculos políticos e jornalísticos como um moderado. O que parece uma ameaça ele diz ser um aviso. «Sei que há um discurso radical, sei que há quem queria lutar por palavras mas também há quem queria fazer uma revolução», diz. «Eu acredito neste sistema político, acredito na democracia. Mas não posso tolerar o insulto gratuito. Fomos e continuamos a ser ridicularizados pela sociedade dinamarquesa. Algumas pessoas reagem mal a isso, como se tem visto pelos muitos atentados.»
Westergaard, o autor da caricatura, é inevitavelmente o rosto do outro lado da barricada. «Os imãs interpretaram o cartoon como uma representação do profeta, mas o que eu crio é uma personagem metafórica, alguém que os terroristas usam como seu refém, lutando em seu nome. Esses sim, abusam da imagem de Maomé.» Recusa veementemente a ideia de que o racismo e a xenofobia estejam a crescer na Dinamarca. «Recebemos inúmeros refugiados, somos um dos países que mais contribuíram para combater a pobreza no mundo islâmico, temos a tradição de acolher comunidades imigrantes imensas. Veja, quem chega à nossa nação tem oportunidade de ter uma casa, dinheiro, liberdade religiosa, perspectivas de uma boa vida. Em troca só queremos a nossa tradição democrática respeitada, incluindo a liberdade de expressão.»
Troels Johannesen, da direcção do Danskjournalistforbund, o sindicato dos jornalistas dinamarqueses, alinha pelo mesmo caminho: o caso é um choque de civilizações. «A Dinamarca tem uma tradição imensa do jornalismo de sátira. A caricatura faz parte da nossa liberdade de expressão, retrata todas as religiões, do cristianismo ao judaísmo. É um valor de que a nossa cultura não pode abdicar. Sobretudo aqui, no local onde fundámos as bases de uma imprensa livre.»
Um país reinventado
Os dinamarqueses já não anunciam que são dinamarqueses quando viajam para o estrangeiro. Dizem que são escandinavos ou, simplesmente, europeus. Se estiverem num país árabe e alguém insistir em localizar-lhes a origem, é bem possível que respondam que são suecos – e essa não é uma frase nada fácil de digerir para um dinamarquês. O país mudou para sempre. Ao menos nisso todos concordam, o imã Pedersen e Westergaard, o porta-voz do sindicato dos jornalistas e a activista dos direitos humanos. Uffe Cristiansen, o jornalista do Jyllands Posten, dá um bom exemplo disso mesmo. «Um cidadão dinamarquês, atrevo-me até a dizer qualquer cidadão dinamarquês, tinha uma tradição quando saía do país: prender um distintivo com a bandeira vermelha e branca na mochila ou na mala. Pois bem, isso acabou e não acredito que alguma vez se repita.»
As agências de viagem, sobretudo as que operam nos países árabes, deixaram de fazer qualquer referência à sua proveniência. Os cartoonistas do Jyllands Posten – e existem três que trabalham em permanência para o jornal – têm todos vigilância permanente. Os 12 desenhos originais do profeta Maomé estão trancados num cofre forte do jornal de Aarhus e muitos dos seus autores abandonaram o país, ou desistiram da profissão, para protegerem as suas famílias. A Westergaard foi oferecido asilo político na Índia, em Israel e nas ilhas Faroé. Ele recusou. «Sou velho, a minha preocupação com o futuro é limitada. Sempre morei aqui e não saberia viver noutro sítio.»
Em 2008, os serviços diplomáticos dinamarqueses em Islamabad foram atacados por um carro armadilhado com uma bomba. Balanço da acção: oito mortos e 27 feridos, com a Al-Qaeda a reivindicar a autoria do atentado. Em Junho deste ano, as autoridades indonésias conseguiram desmontar uma rede que preparava novo ataque à Embaixada da Dinamarca em Jacarta. Todos os anos, no aniversário da publicação das caricaturas, são frequentes os distúrbios – pilhagens e carros incendiados – no bairro de Norrebro, em Copenhaga. E no entanto, por mais que o país tenha mudado, os dinamarqueses continuam a apreciar viver como vivem. Segundo um estudo da universidade inglesa de Leicester, citado na revista Forbes, a Dinamarca é o país mais feliz do mundo.
Foi um choque de civilizações? Foram manobras políticas que decorreram em plena campanha eleitoral na Dinamarca? Foi uma tentativa de desestabilização de alguns regimes no mundo árabe? O único facto seguro é este: os Repórteres Sem Fronteiras continuam a colocar a Dinamarca no primeiro lugar do índice mundial de liberdade de imprensa. Depois há uma última verdade inegável. Os limites da censura, da autocensura e da liberdade de expressão são mais difíceis de definir depois de um jornal de uma pequena cidade de um pequeno país ter publicado um pequeno cartoon na página dois do seu suplemento cultural de sexta-feira.
Era 1 de Janeiro, o relógio marcava dez da noite. Kurt Westergaard preparava-se para ir dormir e caminhava para o quarto, na casa onde vive, em Aarhus. De repente, um estrondo. «Era alguém que batia na porta e me dizia, num dinamarquês macarrónico, que me vinha matar.» Estugou o passo, apesar dos 75 anos não lhe permitirem grandes correrias, para se esconder. O atacante, um somali de 28 anos que pertencia à milícia islamita Al-Shabab (uma das principais células da Al-Qaeda no Leste africano), começou a tentar perfurar a porta da entrada com um machado. Na outra mão trazia a faca com que, disse mais tarde à polícia, «iria cortar a garganta ao demónio».
Westergaard dirigiu-se à sala de pânico da casa, uma casa de banho fortificada onde é virtualmente impossível alguém entrar. A sua neta, de 5 anos, dormia no andar superior, sozinha. «Tive de decidir se ia buscá-la ou não e acabei por seguir as recomendações dos serviços secretos. Não era atrás do resto da família que o atacante estava, era de mim. Se fosse buscar a minha neta, ela ia ver-me morrer», justificou-se à NS’. Entrou na sala de pânico e accionou o alarme.
O somali ainda lutava com a porta quando os homens da PET, a secreta dinamarquesa, chegaram. Em mau inglês, o africano gritou que queria matar Westergaard e atirou o machado na direcção de um agente. Este disparou, atingindo a perna direita do atacante e imobilizando-o. Foi levado a tribunal para responder à dupla acusação de tentativa de homicídio, que negou. Dias depois, um porta-voz da al-Shabab, o xeque Ali Muhamud Rage, veio a público congratular-se com o incidente. «Apreciamos que um rapaz somali tenha tido a iniciativa de atacar o demónio que profanou o profeta Maomé e incitamos todos os jovens a tomarem medidas como as dele», disse à agência France-Presse.
O autor da caricatura de Maomé já tinha apanhado uns sustos, mas nenhum como este. Em Fevereiro de 2008, Westergaard teve de receber um reforço da segurança policial quando as autoridades dinamarquesas desmantelaram uma rede – dois tunisinos e um dinamarquês de origem marroquina – que alegadamente preparava um atentado contra a sua vida. E em 2006, ele e os demais 11 autores de cartoons passaram dez meses escondidos em casas-seguras, de onde eram levados todos os meses. A mulher perdeu o emprego e foi o sindicato de jornalistas que suportou as contas – dele e dos outros ilustradores – em quase um ano que passaram escondidos.