O declínio do ocidente está a desenhar-se pelo medo e pela cobardia

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1 (Nota prévia). Sempre fui um pacifista, no sentido de preferir sistematicamente a resolução de conflitos pela discussão em busca de acordos, compromissos e consensos, considerando o uso da força a priori como uma manifestação de barbárie - e como tal uma fraqueza de espírito dos fortes: os brutos primários e incivilizados.

Mais: sempre considerei que a educação, a cultura e a frequência das artes eram o melhor antídoto para essa fraqueza dos brutos: o conhecimento, a sabedoria e a beleza ensinam a vantagem absoluta do bem e proporcionam as vias pacíficas adequadas para a obtenção da paz procurada honestamente a todo o custo.

Mas também sei que a barbárie é inerente à espécie humana, e nem o progresso civilizacional conseguiu até hoje eliminá-la - pelo contrário, até a refinou maleficamente: basta ter presente que hoje - e pela primeira vez na História - a Humanidade convive com uma acumulação absurda de poder destrutivo mais do que suficiente para se aniquilar completamente a si própria.

Daqui resulta que por vezes a paz só se obtém exercendo a força contra a barbárie.

2 (Factos). A Ucrânia faz parte da Europa geográfica, embora (ainda) não da União Europeia (política). Escolheu o caminho da democracia liberal ocidental (mesmo que lá dentro com partidos pouco recomendáveis - mas que país europeu os não tem?).

Foi e continua a ser atacada exatamente por isso mesmo: porque o tirano que comanda despoticamente a Rússia sabe que no dia em que este modelo lá se instalar ele cai, e será julgado pelos seus crimes sem fim, dentro e fora dela. Se um referendo sobre isto fosse possível lá, em condições de acesso livre a comunicação social também livre, e liberdade total de expressão, não temos dúvidas sobre qual a escolha do povo russo - apesar da sua longa história e tradição de submissão a regimes totalitários e tirânicos.

A desproporção de forças em presença é esmagadora, e - não havendo uma mudança radical no posicionamento do ocidente - não restam ilusões sobre o desfecho trágico deste conflito: vitória da Rússia sobre a uma Ucrânia brilhante a defender-se com espantosa coragem, mas devastada, destruída, arruinada, exangue.

3 (Para além dos factos). O grande ídolo de Putin não é Estaline, mas sim Pedro, o Grande, o czar fundador dessa maravilha "europeia" que é São Petersburgo (a cidade natal do ditador), e cujo império na altura (séc. XVIII) era muito maior do que o soviético que conhecemos até à Queda de Muro de Berlim. É esse o sonho do tirano, que pretende ficar para a história como o grande imperador que reconstituiu a grandeza do império russo.

Só o conseguirá pela conjugação de dois meios: o controlo absoluto do seu povo, pela tirania implacável que sobre ele exerce (domínio total da informação e da comunicação, difusão sistemática da mentira) - já em vigor (1) - e a fraqueza do ocidente perante tal vergonha alheia e perante o desígnio da expansão russa à custa da própria Europa. Está a conseguir reuni-los.

CitaçãocitacaoO medo de uma escalada nuclear é uma falácia que Putin tem aproveitado magistralmente. Mas o simples bom senso indica que ela nunca teria lugar.esquerda

A Europa sofreu duas guerras mundiais no século passado, achou que nunca mais se repetiriam aqueles horrores e "adormeceu" à sombra da suposta defesa norte-americana, descurando a sua própria. E depois deixou-se seduzir por um modelo de "civilização" consumista que a minou por dentro: as redes sociais já não informam, antes desinformam, e promovem o confronto e o ódio; o seu controlo pela inteligência artificial torna ainda mais eficaz, subterrâneo e profundo o seu poderosíssimo efeito na formatação das consciências; e a substituição progressiva do real pelo virtual produz cidadãos apáticos, fracos, incapazes de reagir à constatação do real, mesmo quando premente. Excetuando alguns maluquinhos da extrema-direita e da extrema-esquerda, quem hoje no ocidente dá a vida pelo seu país, como estão a fazer os ucranianos?

Por isso não admira que não se encontre hoje no ocidente nenhum líder com a estatura de um Churchill, que apenas prometeu aos ingleses "sangue, suor e lágrimas", mas jamais se submeteu a Hitler, mesmo sabendo que Londres ia ser dolorosamente bombardeada e que ele já tinha dominado quase toda a Europa. (O Japão ajudou, obrigando, após Pearl Harbor, os norte-americanos a entrarem na guerra ao lado dos aliados - o que foi decisivo para a vitória final destes.)

4 (Política e ação no terreno). É cada dia mais óbvio que a ajuda em armas e logística não chega para travar a vitória russa sobre a Ucrânia. A NATO chegou a ameaçar que o uso de armas químicas era uma "linha vermelha" que a levaria a reagir: elas foram usadas e nada aconteceu. O medo de uma escalada nuclear é uma falácia que Putin tem aproveitado magistralmente. Mas o simples bom senso indica que ela nunca teria lugar: o ditador sabe perfeitamente que, poucos minutos depois de "carregar no botão" (2), Moscovo, São Petersburgo e não sei mais quantas cidades e objetivos militares seriam apagados do mapa. É preciso saber ver quando o inimigo está a fazer bluff.

Para correr estes riscos é preciso, antes de mais, coragem - que é o que o ocidente narcotizado já não tem, assim como carece de líderes que lha pudessem inspirar.

A reação à agressão tinha de ser proativa e logo desde o início. Uma besta como Putin só entende a linguagem da força. Se quando aquelas filas intermináveis de tanques começaram a invadir a Ucrânia umas quantas esquadrilhas aéreas aliadas as tivessem dizimado, a besta perceberia que o ocidente não estava tão amedrontado como se veio a mostrar, e nada lhe restaria senão recuar.

E, da humilhação desse recuo talvez viesse a resultar a sua queda e - quem sabe? -, porventura, uma revolução interna russa que conduzisse à democracia (3). Com acesso a informação e comunicação livres e decentes, nenhum povo escolhe a tirania.

5 (Consequências). Não o fizemos, e agora é cada dia mais tarde, mais difícil e mais caro fazê-lo, porque, entretanto, o inimigo conquista terreno, reorganiza-se e reforça-se. Por medo da irrealista "solução final", vamo-lo deixando destruir e ocupar quase tudo (mesmo que com mais dificuldades do que esperava; mas ele sabe adaptar-se, o seu poder continua enorme, e está a rir-se das sanções económicas do ocidente - tem alternativas suficientemente poderosas: China (4), Índia e o mais que se verá). Entretanto, cada vez mais países aumentam os seus orçamentos de defesa - e os fabricantes de armas (5) esfregam as mãos de contentamento.

Putin contou com o nosso medo a paralisar-nos. Vai ganhar inevitavelmente esta primeira guerra. E quando começar a atacar as próximas vítimas - mesmo membros da NATO - vamos fazer o quê? Uma guerra convencional - muito pior do que a atual, porque entretanto a besta reforçou-se? Ou também ameaçaremos "carregar no botão"? Mas então porque não ter ameaçado logo no princípio? E sobretudo porque não ter provocado a derrota do invasor quando a força no terreno ainda era relativamente pouca?

Estão criadas as condições para o declínio a prazo do ocidente.

Não vai acabar bem.

6 (P. S. - Danos colaterais). A Rússia não tem só tiranos e escravos. Deixou-nos fabulosos compositores, magníficos escritores, dramaturgos e poetas, excelentes arquitetos, artistas plásticos e cineastas.

É uma estupidez crassa "cancelá-los" (como agora se diz e faz) só porque o país vive sob o jugo de um ditador enlouquecido.

Maestro, compositor e professor aposentado.

(1) Não é fácil combater de dentro um estado policial brutalmente repressor e baseado na delação. Salazar sabia-o bem. Dirigi concertos em Moscovo e São Petersburgo antes e depois da Queda do Muro. Nos que ocorreram antes, lembro-me de um pormenor significativo: em todos os corredores dos hotéis havia uma secretária com uma funcionária de serviço permanente, cuja função era registar quem entrava e quem saía de qualquer quarto. Como construir uma resistência quando qualquer interlocutor pode ser um denunciante? Assim se instala o medo paralisante.

(2) Isto. admitindo que a entourage de oficiais superiores em redor do "botão" não reagiria a uma morte certa.

(3) Bem sei que o modelo da democracia também carece de revisão urgente, pois tal como está ela devora-se a si própria elegendo "democraticamente" os tiranos que a vão eliminando. A este respeito, permito-me remeter para o meu artigo Coragem para reinventar a Democracia (publicado no Diário de Notícias online de 13 Janeiro 2019).

(4) Esta, só por si, merecia outro artigo. Também em relação a ela a cegueira do ocidente é de estarrecer (ou será já também cobardia?...).

(5) Que certamente têm muito mais a ver com tudo isto do que se pensa.

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