A primeira (e melhor) cena de Génio - a série ficcional do National Geographic dedicada a Albert Einstein - mostra o genial cientista ofegante, de calças pelos joelhos, a esclarecer pedagogicamente a secretária Betty sobre um dos mistérios do Universo: de pé, e contra a parede. "A monogamia não é natural", explica Einstein, genialmente, entre dois suspiros exaustos. Como conceito, é certamente menos abstrato e difícil de compreender do que a Relatividade Geral, mas a secretária mostra um ceticismo recalcitrante que, após alguns comentários sobre a esposa ausente, dá origem a uma teoria alternativa: "Até podes ser um grande perito no Universo, mas não percebes nada de pessoas, pois não?".É mais ou menos a este ponto que chegam todas as ficcionalizações das vidas dos génios, e Génio tem o mérito de despachar o assunto nos primeiros minutos: eis alguém capaz de decifrar os segredos do Cosmos, mas tão impotente (salvo seja) como todos nós perante os segredos do coração humano. A série é medíocre, mas serve como um compêndio útil de todos os tropos utilizados para representar a genialidade no pequeno ou grande ecrã..Temos a cena em que o jovem prodígio testa a paciência dos seus superiores com perguntas inconvenientes ("o que é que o professor entende por Tempo? E já agora, o que é que o professor entende por Espaço?")..Temos a sequência em que o prodígio, já adulto e na plenitude dos seus poderes, mantém um anfiteatro em hipnotizado silêncio, anunciando que nas próximas duas horas vai mostrar-lhes algo que nunca viram ("vou capturar esta Besta, a não ser que ela me atropele primeiro"; refere-se a um conjunto de equações, mas o vocabulário evoca a maneira como o saudoso Norman Mailer se referia aos seus esforços para escrever o Grande Romance Americano: "Tentar domesticar esta Grande Cabra")..Por fim, a imagem obrigatória do génio amadurecido a escrever gatafunhos num vidro transparente. A mesma imagem aparece em Mente Brilhante (do mesmo realizador de Génio), Good Will Hunting, Proof, The Social Network, The Accountant, e mais uma dúzia de exemplos. Por vezes as fórmulas são apontadas num espelho, em vez de uma janela. Por vezes flutuam no espaço, à volta da cabeça do actor principal. O certo é que, no mundo dos génios, ninguém parece ter um caderno à mão..É moderadamente trágico que filmes dedicados a exaltar proezas de imaginação recorram tantas vezes à mesma gramática empobrecida, mas não deixa de ser verdade que há uma blindagem natural do "génio" à dramatização visual..O que é que acontece, em concreto, quando um génio está a ser genial? Uma comunidade de convicções é abalada; os detritos mais promissores de barbarismos abandonados convergem na mesma órbita; uma nova coerência é criada ex nihilo. Até um encontro com uma Sarça Ardente no topo do Monte Horeb é mais apelativo à representação visual; não há técnicas óbvias para captar o processo de sinapses a disparar. A própria linguagem tem notórios problemas com isto, e não admira que a melhor solução encontrada pelo cinema seja um Russell Crowe ou um Benedict Cumberbatch a inclinar a cabeça para o lado enquanto uma tabuada inteira se espalha contra os vidros duplos, ao som de uma orquestra de cordas..A alternativa é mostrar o lado humano do génio, que o revela inevitavelmente como alguém com uma subespecialização em ser cretino. O cinema pode não conseguir fazer muito a partir de E = MC2, mas poucas coisas lhe agradam mais do que mostrar o comportamento de alguém avariado dos cornos: o génio que deixa queimar as torradas, tropeça nos próprios atacadores, insulta inadvertidamente família e amigos, e no fim recebe uma medalha ou um prémio Nobel..Esta ideia, também ela banalizada, do génio como mero passageiro no mundo da matéria, afundado num autismo de imersão total, é, aliás, amplamente sancionada pela realidade. Desde Tales de Mileto, que caiu ao poço por andar distraído com as estrelas, a iconografia popular está repleta de histórias (reais ou apócrifas) sobre o génio absorto: Newton a perguntar constantemente às pessoas se por acaso sabiam se ele já tinha almoçado; Adam Smith a cozer uma fatia de pão com manteiga num bule de água fervida e a beber a resultante mistela como se fosse chá; Einstein perdido na rua, a telefonar para casa a perguntar a morada. Einstein, na verdade, adoptou o papel com brio depois de o exílio o ter integrado na máquina publicitária americana e na cultura da celebridade..Tal como Oscar Wilde adivinhara, o génio era algo que se podia declarar, e o professor excêntrico, com sotaque e penteado a condizer, e sempre disposto a deixar-se fotografar com a língua de fora ou peúgas desirmanadas, cumpriu uma função não muito diferente das perenes fotografias de celebridades em férias, com as suas escandalosas revelações de rugas, celulite, ou discussões conjugais: ali estão Eles, tão diferentes, e no entanto tão parecidos connosco..Ter ou ser?.Na Antiguidade Clássica, génio não era algo que se fosse, mas algo que se tinha. A palavra deriva da mesma raiz de "genético" (e de "genital"), e designava originalmente um espírito tutelar atribuído a qualquer pessoa à nascença, que presidia ao seu destino e determinava o seu carácter, para o bem ou para o mal..Essa concepção de génio não estava muito distante do que depois foi sistematizado como possessão demoníaca e mais tarde como Psicologia: uma força simultaneamente parte do, e exterior ao, indivíduo, que ia modulando as vacilações do seu temperamento. É no século XVIII que o culto romântico do génio começa a assumir a forma que hoje lhe damos, até no seu aspecto performativo. Depois de o Iluminismo ter reduzido o número de intermediários entre o humano e o divino (anjos, santos, profetas, Jorges Mendes, etc.), a devoção secular previamente reservada a esses emissários celestes foi transferida para as raras criaturas cujos dotes naturais lhes conferiam um lugar privilegiado na Ordem Criada..O culto teve as suas hagiografias, peregrinações e relíquias. Há uma macabra micro-história (exemplarmente resumida num livro de Bess Lovejoy intitulado Rest in Pieces) sobre o destino de fragmentos corporais de génios falecidos, desde os dedos de Galileu ao crânio de Descartes, passando pelo "último fôlego" de Thomas Edison (preservado num tubo de ensaio). As deambulações do cérebro de Einstein são mais ou menos conhecidas; menos serão as dos seus olhos, também eles extraídos no momento da autópsia e oferecidos ao seu oftalmologista, que os manteve num frasco até 2009, altura em que foram transferidos para um depósito colossal em Nova Iorque, mais ou menos como a Arca da Aliança no final do primeiro Indiana Jones..Mais intrigante de todas foi a carreira póstuma do pénis de Napoleão, quase tão activa como a do seu portador. Supostamente roubado pelo médico legista, foi circulando durante décadas entre vários coleccionadores, até ser comprado por um urologista americano, que o guardou debaixo da cama, numa mala de viagem, longe de olhares curiosos; antes disso chegou a ser exposto no Museu de Arte Francesa, onde um repórter do The New York Times o descreveu como "uma enguia mirrada", e milhares de espectadores terão feito trocadilhos com a palavra "Bonaparte", nenhum deles genial..O que é um génio? O que entendemos hoje por génio? O Modernismo, com a sua propensão para descascar tendências antes de elas perceberem que existem, chegou lá primeiro: um dos capítulos de O Homem sem Qualidades, de Robert Musil, descreve a consternação do protagonista quando vê uma referência na imprensa a um cavalo de corrida "genial"..Uma pesquisa recente nas páginas online de quatro jornais nacionais (o DN, o Público e dois diários desportivos) devolveu o seguinte sortido de figuras às quais o rótulo foi aplicado: Stephen Hawking, Eusébio, Léon Walras, Almada Negreiros, Pinto da Costa, Michael Jackson, Ricardo Quaresma, Valentino Rossi, Alex Ferguson, Prince, Liddell Hart, José Maria Pedroto, Pablo Aimar, Renato Sanches, José Saramago, Jorge Jesus, Violeta Parra, o hacker dos mails do Benfica, e Rúben Ribeiro. Schopenhauer escreveu que a diferença entre talento e génio é que o talento atinge os alvos que mais ninguém atinge, enquanto o génio atinge os alvos que mais ninguém consegue ver - o que talvez ajude a explicar alguns nomes na lista..O conceito excepcionalista de génio pressupõe duas possibilidades prévias: a de uma hierarquia de talentos e a de critérios objectivos para os hierarquizar. Duas ideias que revelaram uma durabilidade improvável perante a emergência de convicções igualitárias. Absorvido como categoria cultural, e uma da qual não damos sinais de querer prescindir, o génio tornou-se um embaixador ambulante daquilo que podemos fazer, e um prémio de consolação colectivo para aquilo que não conseguimos..A monogamia pode ou não ser natural (para o próprio Einstein, suspeita-se de que a convicção variava de acordo com o posicionamento das suas calças). Um monoteísmo sem santos seculares é que não parece ser.