O cronista confessa-se

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Que tempo este em que falar de árvores é quase um crime,
porque seria esquecer tantas
injustiças.

Bertolt Brecht

O cronista gostaria de soltar a sua escrita e falar, não de árvores, mas de viagens, não de flores, mas de memórias. Mas interpõe-se e impõe-se à sua escrita, como o elefante no meio da sala de que falava na última crónica, o momento político que atravessamos.

É um estranho país, este em que vivemos desde o dia 7 de novembro. Sou filho de juiz e nos tempos de meu pai havia uma regra, que se perdeu, chamada "segredo de justiça". Hoje, basta ser mencionado por um suspeito ou por uma testemunha num processo, para se ser publicamente incriminado. Eu sei o que o meu pai pensaria disto, mas não o tenho já neste mundo para poder falar com ele.

Já tivemos uma "república de juízes", a Itália dos processos das "Mãos Limpas", que destruiu, ou fez implodir, o sistema político italiano. Seguiu-se a este terremoto o incorruptível Berlusconi e, depois de Governos chefiados por técnicos económicos e não por políticos, chegámos ao Governo de extrema-direita da sra. Meloni.

É fácil de compreender o mecanismo que leva a generalizar a corrupção que temos à vista com todo um sistema político na sua globalidade e avançar o combate contra ele, sem ponderar a legalidade do procedimento, nem os seus efeitos prováveis.

Quando eu era jovem, também acreditava que só a destruição total do sistema económico capitalista poderia levar à construção de um mundo novo, em que os amanhãs começassem a cantar. Com o tempo e seguindo o aforismo de Willy Brandt ("quem não foi comunista aos 20 anos não tem coração; quem não se tornou social-democrata aos 40 não tem cabeça") tornei-me social-democrata. Não quero destruir o capitalismo, mas regulá-lo e pô-lo ao serviço do interesse público.

Mas a social-democracia não pode ser uma máscara para dar um rosto humano ao neoliberalismo extremo, que nos Anos 80 do século passado, veio substituir o liberalismo com algumas preocupações e compromissos sociais, por uma ideologia claramente antissocial. Entre nós, essa transformação do liberalismo com preocupações sociais em liberalismo declaradamente antissocial chegou com a troika e seus servidores.

Friedrich von Hayek, o grande economista liberal, ao ver nascer o Sistema Nacional de Saúde no Reino Unido, considerou que estava a ser dado um passo fatal no "caminho para a servidão" que conduzia aos totalitarismos. Essa ideia de combate ao Estado Social, afastada algum tempo pelos próprios liberais face às necessidades do pós-guerra, voltou a comandar as políticas liberais desde Margaret Thatcher, aquela que duvidava da própria existência de uma sociedade...

A social-democracia, que tem um pensamento próprio e que defende (ou devia defender) um Estado estratega e interventor e combate (ou devia combater) a rendição da economia real e produtiva aos especuladores financeiros, tem de assumir claramente as suas diferenças em políticas públicas com os extremistas neoliberais.

Por isso, o momento que atravessamos é fundamental para o nosso futuro. Os servidores da troika continuam e continuarão a querer ir além da troika. Os inimigos da democracia continuam e continuarão a colocar-se como a única alternativa a um sistema corrupto. Só uma afirmação claramente social-democrata, que rejeite a mentira do TINA (There is no alternative), poderá dar esperança aos descrentes do sistema e oferecer um caminho viável para enfrentar as crises que ameaçam a democracia, bem como os seus fautores.

Como prometi uma confissão, faço-a e chamo-lhe declaração de interesses: sou socialista (que surpresa, leitor!) e, não obstante toda a amizade e consideração que tenho por José Luís Carneiro, com quem tive o gosto de trabalhar, sou apoiante de Pedro Nuno Santos. E que o futuro nos traga o equilíbrio e a moderação necessários para que eu possa falar de árvores sem remorsos.

Diplomata e escritor

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