O CREPÚSCULO DA NEGRITUDE

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Durante praticamente todo o século passado, ou mais limitadamente entre a década de 30 e o fim da retirada das soberanias coloniais de África, a negritude foi uma referência que animou os movimentos de dignificação da cultura africana e a unidade dos seus povos contra a situação de domínio pelos europeus.

Foi um movimento de intelectuais, cujas figuras mais representativas terão sido L. S. Senghor e Aimé Césaire, cuja intervenção foi mundialmente consagrada, sempre com interesse e em geral com louvor.

Na vertente do combate contra o domínio dos brancos, a identificação e reprovação do racismo, e portanto dos mitos raciais, foi uma base importante da luta contra a discriminação que era sobretudo imputada aos poderes colonialistas, responsabilizados pela falta de igualdade jurídica das etnias em contacto, pela barreira social e política que impedia as populações naturais do acesso aos benefícios da informação, do saber, e da igualdade de oportunidades.

Ao lado do mito da inferioridade dos judeus que teve a expressão mais criminosa no holocausto, do mito da superioridade ariana que animou o governo nazi executor daquele crime contra a humanidade, do mito da perigosidade da mestiçagem, mitos que ocuparam profundamente a UNESCO para os combater, o mito da inferioridade dos negros teve uma longa história de justificação da escravatura, do transporte dos escravos, do trabalho forçado, da política da evolução separada.

Na vertente da animação e aprofundamento da identidade comum dos negros de todas as latitudes, esteve a convicção de que era viável fortalecer um crescente sentimento de pertença da mesma história, dos mesmos interesses, do mesmo sonho de futuro.

Uma maneira de ser e de estar a que a experiência dos outros povos de regra não corresponderia, e a que a longa situação colonial de submissão acrescentava a nostalgia da passada maneira de viver, e constrangia, pelo autoritarismo dos métodos, a afirmada superioridade da intuição, das emoções, das solidariedades humanas desses povos, sacrificados aos interesses dos poderosos invasores.

A África do Sul, que foi severamente criticada e condenada na ONU pelo regime do apartheid, tem em Mandela um inspirador da mudança que ao mesmo tempo eliminou o regime político colonial, e avançou para transformar a sociedade civil, em conflito, numa sociedade de confiança, para isso envolvendo o encontro das diferentes etnias em liberdade, e a pacificação da memória das agressões pela verdade em público assumida e perdoada.

Infelizmente, a história iniciada com a libertação política da submissão colonial não mostrou, no desenvolvimento da nova ordem, as mesmas solidariedades e virtudes com que o movimento da negritude quis contribuir para dar um sentido integrador à luta pela libertação dos povos.

Às longas guerras internas, nas antigas colónias europeias de África, somam-se os conflitos militares entre as novas soberanias.

Nestes casos, a luta pela aquisição, manutenção, e exercício do poder político, sobretudo quando a violência tem mais presença do que o sufrágio, não ensaiava uma inovação à prática que faz parte da experiência de todas as áreas políticas do mundo.

Todavia, o que está a passar-se na África do Sul parece uma negação fontal de todas as convicções e pregações dos que lançaram o movimento da negritude, porque as suas fissuras e ataques não abonam nenhum dos pressupostos da pregação.

Agora, como em qualquer outra parte do mundo, são a pobreza e o desemprego que levam a definir outro adversário, e talvez outro perigoso mito, que é o do estrangeiro. Ao contrário da xenomania, que tem manifestação frequente, é a xenofobia que alastra, sem conotações necessariamente éticas ou culturais, mas sim porque a crescente situação de necessidade, a geografia da fome, a desregulação das migrações, encaminham para o mito do estrangeiro inimigo, um resultado em cujas causas, não apenas em África, estão possivelmente efeitos colaterais de um globalismo sem ética.

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