O coração portuense de D. Pedro IV
Nasceu no Palácio de Queluz, no mesmo quarto Dom Quixote onde morreria com 36 anos incompletos, e passou a maior parte da vida no Brasil, mas tinha o Porto no coração. Dom Pedro IV de Portugal, I do Brasil (único príncipe de uma dinastia reinante a proclamar a independência da antiga colónia) viveu nesta cidade uma etapa tão dura como decisiva para a vitória da causa liberal e, ao partir para Lisboa, a 26 de julho de 1833, não se esqueceu de fazer esta emocionada proclamação: "Amigos portuenses, a Divina Providência, que nos tem sempre protegido, dignou-se permitir que a Divisão Expedicionária, que deste Exército destaquei, entrasse em Lisboa, batendo os rebeldes; e que a Esquadra da Rainha [a pequena Dona Maria II, sua filha, em favor da qual Dom Pedro resignara à Coroa] fundeasse no Tejo: Forçoso é portanto, que eu parta, sem demora, para que de Lisboa possa dar mais amplamente as providências que as circunstâncias reclamam. Bem tendes visto, Portuenses, que enquanto esta Cidade podia correr o menor perigo, nunca vos desamparei; agora, porém, que as circunstâncias têm mudado completamente, obedeço com inteira confiança à necessidade de deixar-vos por algum tempo; levando comigo a saudade mais pungente de vós, e dos meus companheiros de armas." Por isso, num gesto largo, cheio do romantismo próprio da sua época, o Rei decidiu em testamento que o seu coração seria oferecido à cidade, em reconhecimento de tão bons e leais serviços.
Para o historiador Joel Cleto (autor de vários programas de televisão sobre a História da cidade) nada poderia ser mais justo: "Podemos dizer, até em jeito de brincadeira que Dom Pedro deve muito mais ao Porto do que o contrário, mas é uma figura de enorme simbolismo para a cidade, mesmo que a maior parte da população hoje não saiba porquê. Basta ver que em toda a cidade só temos três estátuas a monarcas e uma delas, a que está situada na Praça da Liberdade, em pleno centro, é dedicada a esta figura chave da História de Portugal e do Brasil. Por outro lado, quem mora no Porto está constantemente a "cruzar-se" com o coração de D. Pedro, na medida em que o logotipo da PSP local tem em grande destaque o coração bem vermelho do rei." Joel Cleto recorda também que o coração de D. Pedro figurou no brasão da cidade do Porto durante mais de um século... até que Salazar o mandou retirar. Esta decisão do ditador não foi, no entanto, seguida por instituições como o Futebol Clube do Porto (que o tem no emblema), a Associação Comercial ou os Bombeiros Portuenses. "Não foi por acaso que, ao regressar a Portugal continental, Dom Pedro, vindo da Ilha Terceira, optou por desembarcar nos arredores do Porto. Recorde-se que a revolução de 24 de agosto de 1820 começou aqui e que o grande constitucionalista desta época, Manuel Fernandes Tomás, também é daqui, tal como Passos Manuel, um dos grandes reformadores do Liberalismo. Dom Pedro esperava ter aqui mais apoios, mas foi um esforço terrível porque, ao fim de poucos dias, o seu exército viu-se cercado. Eram 7500 homens contra os mais de 40 mil de Dom Miguel. Teria sido impossível sobreviver (e vencer) sem o apoio decisivo da população durante os 13 meses que durou o cerco."
Nesse período de todas as provações (durante o qual a saúde de Dom Pedro, que sofria de tuberculose, se agravou muito) a ligação entre o monarca e os portuenses estreitou-se. Joel Cleto realça que nos poucos meses que vive depois da vitória, Dom Pedro fará imensas coisas para agradecer à cidade: "Devemos-lhe o primeiro jardim público, o de São Lázaro, a criação do primeiro museu nacional (o que é hoje o Museu Nacional Soares dos Reis), a Biblioteca Pública (criada ainda durante o período do cerco) e a Ordem de Torre e Espada, que ainda hoje ostenta orgulhosa no seu brasão."
E o que sabem os portuenses de hoje sobre estes factos históricos, de tal maneira identitários que fazem parte da heráldica de algumas das suas principais instituições? O DN foi para as imediações da Praça da Liberdade, onde a estátua equestre assinada pelo francês Célestin Calmels está parcialmente entaipada pelas obras do Metro, perguntar isso mesmo a quem passava (sem ser turista, o que hoje não é fácil) e ouviu muitas escusas à conta do alegado "esquecimento das aulas de História", que já vão longe no tempo. Mas o que todos sublinham é o desagrado pela iminente partida do coração do Rei para o Brasil, marcada para a madrugada de 21 agosto a tempo de estar no Brasil a 7 de setembro, data em que se assinalam 200 anos sobre o grito do Ipiranga, proclamado por Dom Pedro nas margens do riacho do mesmo nome:. "Estamos a falar de património do Porto", dizem Fernando e Maria, a tomar o seu pequeno-almoço no histórico Café Ateneia, em plena Praça da Liberdade, "um património muito frágil porque se trata dum resto mortal. Quando quis que o seu coração ficasse aqui, o rei não teria intenção que este andasse a viajar dum lado para o outro do Oceano. Há que ter muito cuidado com algo tão frágil." Tal como Fernando e Maria, Isabel Soares, livreira, sabe das razões que tornam esta figura histórica tão querida da cidade e também por isso questiona "a oportunidade de fazer este coração, com 200 anos, atravessar o Atlântico. Acho um disparate, se foi o próprio a doá-lo à cidade, essa vontade tem de ser respeitada."
Menos consensual, Miguel de Castro, também comerciante, considera que "a figura de Dom Pedro IV não é tão linear como hoje é recordada. Na época do cerco do Porto terá sido aplaudido por muitos mas também haveria no país quem o considerasse um traidor porque proclamara a independência do Brasil e depois tentou segurar as duas coroas." Quanto à polémica em torno da viagem do coração, Miguel, que a tem acompanhado "através do Porto Canal", acha mal: "É um património. Não sabemos se resiste nem se volta depois dumas semanas, como está prometido."
Tudo começou em julho de 1832. Organizados no exílio, nomeadamente em Inglaterra, e depois nos Açores (onde as fileiras foram engrossadas por voluntários locais), os partidários de D. Pedro desembarcaram na praia do Pampelido, nos arredores do Mindelo, a 8 de julho de 1832, e dirigiram-se para o Porto. Mas esta não foi uma marcha triunfal. Como escreve o historiador Eugénio dos Santos na biografia dedicada ao Rei (Círculo de Leitores, 2006): "Acabaram por ser cercados no Porto, para onde acabaram por ser encurralados. Aí se fortificaram e se prepararam para resistir, enquanto fosse necessário, partindo depois para o resto do país. E D. Pedro manifestava uma atividade estuante. Aparecia em toda a parte e supervisionava tudo, queixando-se em carta para o Brasil, dos "fanáticos" e da corja infame que se lhe opunha."
Também Sérgio Figueira, historiador e investigador do CITCEM - Centro de Investigação Transdisciplinar Cultura, Espaço e Memória, da Faculdade de Letras do Porto, nota: "Quando D. Pedro entrou no Porto, a população terá assistido silenciosa, pouco impressionada com o seu pequeno exército de pouco mais de sete mil soldados, e apreensiva com o que estava para vir. Durante um ano, os combates entre liberais e miguelistas arrastaram-se, e as doenças e a fome atormentaram os portuenses. Apesar disso, juntaram-se na defesa da sua cidade pela liberdade."
Irrequieto e apaixonado, Dom Pedro não se escondeu atrás das suas tropas - entrosou-se com os portuenses, como escreve Eugénio dos Santos: "Começara a conhecer bem a cidade e as suas gentes, a dialogar, beber, folgar e a misturar-se com quem lhe aparecia. Deixara o palácio das Carrancas para ir morar na Rua da Cedofeita. Daí saía a pé para passear pelo Campo de Santo Ovídio e ir até à Igreja da Lapa, vestido como um paisano, para se proteger do frio do Inverno."
Mais impressionante, porque contemporâneo e próximo, é o testemunho do Coronel Owen, que privou com Dom Pedro IV em tais circunstâncias e escreveu um testemunho notável a que deu o titulo de O Cerco do Porto. Hugh Owen, galês de nascimento, integrara as tropas britânicas de Wellington que rechaçaram a terceira invasão francesa em Portugal e por cá ficou, casando com uma viúva portuguesa ligada aos negócios do vinho do Porto e tendo com ela quatro filhos, a mais célebre das quais foi Fanny Owen, cuja triste história de amor foi contada primeiro por Camilo Castelo Branco e depois por Agustina Bessa-Luís. Conhecedor da valia militar e das simpatias liberais de Owen, Dom Pedro tê-lo-à chamado ao seu serviço, mas impedido de o fazer pelo governo britânico, o militar pôs à disposição do Rei o seu filho adulto, já português por nascimento. Da admiração incondicional de Owen por D. Pedro IV não restam dúvidas quando se lê as páginas de O Cerco do Porto: "A tentativa de D. Miguel apoiada pelo reino em peso - porque todos, ou abertamente ou pela neutralidade e inação, o ajudavam - também falhara: não conseguia esmagar essa mão cheia de bravos, isolados, esfaimados e cercados numa cidade, sobre a qual recaiam tantos males. Nem a peste, nem a fome, nem a inquietação, nem os milhares de bombas e granadas, ameaçando constantemente a vida e o bem estar dos soldados e das pessoas a quem mais queriam, domavam a constância dos portuenses, a coragem do espírito de D. Pedro. Como um javali no último reduto espalha a morte e o terror entre os que o acossam, formidáveis somente pelo número, os liberais resolviam-se a morrer, nunca vencidos senão pela morte."
Hugh Owen não poupa nos elogios a este príncipe Bragança, bem mais enérgico do que os da sua linhagem: "D. Pedro de Alcântara, apesar de educado no velho molde dos príncipes portugueses, teve a sorte de se conhecer e de destrinçar, entre as qualidades que realmente possuía, os seus defeitos. Muitas vezes lamentava que em novo tão mal o houvessem dirigido. Naturalmente altivo, mostrava-se amiúde indiferente, cansado ou aborrecido quando o obrigavam como príncipe, num dia de gala, por exemplo, a dar a mão a beijar, durante horas seguidas, a chusmas de cortesãos, desde o bispo ao frade, do fidalgo ao rústico, desde o general ao soldado e do almirante ao marujo. As feições alteravam-se-lhe de puro nojo, quando um pretendente conspícuo se aproximava rastejando humildemente. Para com os estrangeiros não lhe faltava nem polidez nem delicadeza, e, quando os rapazes do seu tempo se lhe ajoelhavam aos pés, atirava-lhes um piparote ao nariz, sem perder a dignidade de príncipe. Tinha disposições naturais para os ofícios mecânicos, e destreza em todos, principalmente no torno. Apaixonara-o a música, que aprendeu com Marcos Portugal; gostava de caça, de montar a cavalo e de jogar as armas; pesquisava dos estrangeiros os usos, costumes e divertimentos dos príncipes e das cortes, e deleitava-se a conversar com militares sobre façanhas da guerra dos franceses."
Como a polémica em torno desta súbita peregrinação do seu coração vem sublinhar, este homem em tudo tão diferente dos outros príncipes europeus marcou todos os lugares em que viveu e lutou, em particular o Porto. Para o historiador Sérgio Figueiredo: "Talvez seja esse espírito do valor da liberdade contra a tirania, e uma certa tradição liberal e de contrapoder, muito presente ao longo da história do burgo, a herança mais importante deixada por Dom Pedro que, ao legar o seu coração ao Porto, desse modo, simbolizou o seu agradecimento e apreço à cidade e aos seus habitantes."
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