O congolês que tomou Lisboa: dos teatros do centro à Cova da Moura

Faustin Linyekula é o Artista na Cidade 2016. Na reta final, fala sobre o ano que passou. Hoje e amanhã está na Gulbenkian
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Faustin Linyekula vem de longe, apesar de parecer vir de cada vez menos longe. No início da bienal Artista na Cidade, em janeiro, o coreógrafo e bailarino congolês disse ao chegar a Lisboa: "Estou em casa." À hora dos seus últimos espetáculos, não será talvez exagerado dizer que não nos era possível perceber até que ponto aquilo era verdade. Não podíamos saber então, por exemplo, que ele compraria uma casa na rua do Zaire. Ri-se quando conta isto. É que a República Democrática do Congo era Zaire quando Faustin nasceu, em 1974. "Decidi mudar a minha base na Europa de Paris para Lisboa." Foi algo decidido a quatro, com a mulher Virginie, e os filhos, de 9 e 12 anos.

Quando o encontramos, voltara de Lisboa para Congo havia 15 dias. Hoje e amanhã leva à Fundação Calouste Gulbenkian more more more future. Mas o futuro, esse, como sempre, veio depois, e só chegou no final da conversa. Faustin, que vive em Kisangani, Congo, onde coreografa e dança nos seus estúdios Kabako.

Kisangani está, obviamente, a milhares de quilómetros. Mas ele, que neste ano levou à sua cidade um bailarino da Companhia Nacional de Bailado, trabalhou com os finalistas da Escola Superior de Teatro e Cinema (ESTC), dançou em quase todas as grandes salas da capital e convidou quem quis para aquilo que, entre o espetáculo e uma festa, levou aos Terraços do Carmo em junho, diz que o que fez aqui está próximo do que faz na sua terra. Sobretudo pelas experiências que teve ao dançar em bairros como a Cova da Moura, Vale da Amoreira, o Bairro do Condado ou o Padre Cruz. A todos eles levou a sua peça Le Cargo.

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"Quando vou à Cova da Moura não há um lugar que é identificado como teatro. O que vai fazer o teatro é a relação que se vai estabelecer num momento entre mim como bailarino e as pessoas que se deslocam. Era uma sala de desporto [o polidesportivo], as pessoas vieram e pelo facto de eu ter dançado lá, aquele sítio tornou-se num teatro. Então o teatro já não era um edifício. Não, o teatro torna-se numa relação. E em Kisangani é assim, não temos um lugar que identifiquemos como teatro. Cada canto é um potencial teatro", explica.

Isto é Linyekula e, ouvindo-o, percebe-se que ele não se sentiria confortável ao ser apelidado Artista na Cidade sem trabalhar com quem a pertence. Não lhe bastava trazer Statue of Loss ou Triptyque Sans Titre ao Centro Cultural de Belém, como fará nos dias 18 e 19.

Era preciso que isto, que ele haveria de descrever, também acontecesse fora dos teatros: "Talvez seja pedir demasiado à arte, mas acredito que ela pode desempenhar esse papel de detonador da imaginação, criador de espaços de sonho. E nós temos necessidade desses lugares em todo o lado. Ainda mais nas zonas mais frágeis da cidade. Porque é lá que as pessoas têm a impressão de estar frente a uma parede. Claro que vamos voltar ao mesmo caos, ao mesmo desespero, à mesma obscuridade depois. Mas o facto de, por uma hora, ter havido um pedaço de luz, permite respirar e continuar."

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Quando trabalhou com os finalistas da ESTC, num espetáculo que em julho subiu ao palco do teatro Maria Matos, Linyekula percebeu que a maioria deles, que estudavam ali, na Amadora, há anos, nunca haviam notado que o bairro de Santa Filomena estava a dez minutos dali. Bairro que ele conheceu em janeiro, quando a demolição de muitas casas já tinha acontecido, mesmo para aqueles que não tinham teto alternativo. "Ser artista é negociar em permanência com um contexto: tentar fazer poesia num contexto preciso. Fazer um Shakespeare no teatro Old Vic em Londres não é a mesma coisa que o fazer na Amadora, mesmo que não mudemos nada. Eu disse: "Vamos." E isto alimenta o trabalho. Não fomos lá necessariamente para contar a historia de Santa Filomena, ou fazer militarismo. É como uma semente que lançamos."

Sobre more more more...future diz que "é uma forma de ser punk. É possível ser punk no Congo? Se quero ser um rebelde não posso dizer no future, isso é fazer o que todos fazem, a única forma é afirmar um desejo de futuro a construir."

Linyekula não sabia ainda em que dia voltaria ao Congo. É que para chegar a Kisangani tem de passar pela capital, Kinshasa, e o medo que a violência que a tomou provoca atrasa a ida.

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