"O conflito que fez mais vítimas no ano passado não foi o da Ucrânia, mas sim a guerra do Tigré, na Etiópia"
Segundo o Índice de Paz Global , que o seu instituto realiza, o mundo está menos pacífico agora do que há um ano. Essa situação deve-se sobretudo à guerra na Ucrânia ou é mais complicado do que isso?
É mais complicado do que isso. Se abrirmos o Índice desde há 15 anos vemos que tivemos 13 anos em que baixou a pontuação em termos de paz a nível global e só em dois anos é que tivemos uma pequena subida. Portanto, ao longo dos últimos 15 anos tivemos uma baixa de mais de 3% em termos do nível paz globalmente. Quando olhamos para o ano passado, a que o recente relatório se refere, vemos uma baixa de 0,42% que nos pode levar a pensar que não é muito, mas é muito significativo, principalmente quando agregado a um período de tempo semelhante.
Isso quer dizer que mais países ficaram menos pacíficos do que países que melhoraram no Índice?
Não, pelo contrário. Há mais países que ficaram mais pacíficos do que países que pioraram, mas a deterioração nestes foi muito mais rápida, numa percentagem muito maior comparada com os países que tentam tornar-se mais pacíficos. Portanto, há uma diferença cada vez maior entre os países mais e menos pacíficos do mundo. Quando olhamos para a evolução do ano passado conseguimos ver isso claramente. Claro que a Rússia e a Ucrânia foram dos países que tiveram duas das maiores descidas no Índice de Paz devido ao conflito que gerou cerca de 85 000 vítimas. No entanto, o conflito que deu origem a mais vítimas no ano passado foi o conflito na Etiópia, a guerra do Tigré, que teve como consequência mais de 100 000 vítimas. Porque é que isto não é do conhecimento geral? Porque não é divulgado, pois os jornalistas não têm acesso nem existe um fluxo livre de informação que venha do Tigré. Portanto, podemos ver claramente que num período de 15 anos foram conflitos que geraram esta diminuição no índice de paz e, no ano passado - e esse é um número que me perturbou muitíssimo -, vimos um aumento de 96% do número de vítimas em conflitos. É algo que começou há quatro ou cinco anos e temos vindo a assistir a mais e mais conflitos e vítimas, mas no ano passado praticamente duplicámos os números. Agora é claramente exponencial e não é só na Ucrânia. Temos conflitos por todo o mundo que têm vindo a acontecer ao longo do tempo.
Um conflito como este agora, entre Israel e o Hamas, não é novo, mas há uma nova dimensão, devido à reação israelita ao ataque do grupo palestiniano com civis mortos e sequestrados. Fará baixar ainda mais o nível de paz no próximo Índice?
Sem dúvida. Já vimos que Israel sofreu uma das maiores descidas no nível de paz no ano passado e vimos também, ao analisar o impacto relativo do terrorismo, que Israel foi um dos dez países com maior subida no número de vítimas e de ataques. No tipo de investigação que fazemos no Instituto olhamos para a paz como tal e para aquilo a que chamamos paz negativa e paz positiva. A paz negativa é, por definição, a ausência de violência pelo medo da mesma. Também aí houve uma diminuição de paz. Os domínios principais que analisamos são: o envolvimento num conflito, os níveis de segurança interna e os níveis de militarização. Depois, a paz positiva significa que olhamos para todos os elementos que temos de estabelecer para desenvolver a paz a favor da sociedade. Basicamente, quando olhamos para sociedades pacíficas sustentáveis vemos que o aumento da paz positiva traz todos os benefícios económicos, sociais e de bem-estar: atitude, estruturas e instituições instaladas. Quando olhamos para um país como Israel, por exemplo, com a diminuição dos níveis de paz vemos uma paz negativa, mas também um impacto na paz positiva, especialmente quando analisamos territórios como a Faixa de Gaza ou a Cisjordânia vemos claramente que não estão presentes quase nenhuns dos pilares da paz positiva. Nesse sistema de abordagem à paz existem quase 80 pilares interligados e quase nenhum desses pilares tem estado presente ou posto em ação, portanto não podemos falar de um fluxo de informação livre, certamente também não podemos falar de boas relações com os vizinhos, desenvolvimento de capital humano, equidade na distribuição de recursos ou um ambiente empresarial saudável. Todos esses elementos básicos que criam sociedades pacíficas não estão presentes na região. O Médio Oriente e Norte de África continua a ser hoje a região menos pacificado mundo.
E a região mais pacífica do mundo continua a ser a Europa?
É a Europa, mas, como pode compreender pela explicação que acabei de dar, continua rodeada pelas regiões menos pacíficas do mundo - o Médio Oriente e o Norte de África. Estas regiões estão melhores do que estavam há três, quatro ou cinco anos, mas continuam no fim do nosso Índice. Claro que temos a Rússia e a Eurásia, os conflitos na Ucrânia, no Nagorno-Karabakh entre o Azerbaijão e a Arménia e depois a região subsaariana e o Sahel que é a região onde vemos o epicentro do terrorismo, e a concentração do impacto ecológico que também gera formas de violência. Também vemos aí uma concentração de problemas de governança com muitas sociedades muito instáveis.
Como explica Portugal estar sempre no top 10 do mais pacíficos?
Claramente, e parabéns a Portugal por lá estar, quando olhamos para o Top da paz mundial encontramos uma maioria de pequenas democracias liberais. Se analisarmos o Top 20, vemos muitos países europeus ocidentais, pertencentes à União Europeia, que são democracias. Quando olhamos para Portugal temos de ver dois aspetos: decisões políticas que investiram de alguma forma na paz positiva e que criaram uma sociedade em que a paz positiva também gerou altos níveis de paz negativa. Assim, quando olhamos para os três domínios vemos que Portugal não está diretamente implicado num conflito interna ou externamente, talvez através da UE ou da NATO devido a ser membro dessas organizações; existe um alto nível de segurança interna em Portugal atualmente; o seu nível de militarização não o coloca na dianteira de uma indústria defensiva ou nos grandes investimentos da indústria militar. Sendo estes os critérios para medir a paz, normalmente as pequenas democracias que não estão envolvidas em debates geopolíticos ou possuem indústria defensiva têm muito boas pontuações. Portugal está lá em cima acompanhado pela Dinamarca, pela Áustria e outros países da UE comparáveis.
O que me espanta é que Portugal que é tão semelhante a Espanha em tantas aspetos, não é similar em termos do Índice de Paz, ou seja um é sétimo outro 32.º. Isso deve-se às rotas de imigração ilegal em Espanha, ao separatismo catalão? O que é que explica que Espanha esteja numa posição tão diferente?
Espanha também é considerada um país altamente pacífico, continua no primeiro terço do Índice Global de Paz, mas é preciso perceber a complexidade do Índice. Nós trabalhamos com 23 indicadores diferentes. Apontou alguns efeitos potencialmente desestabilizadores para um país que é bastante maior, que talvez esteja um pouco mais implicado na geopolítica regional, que tem uma indústria de defesa que é um pouco mais desenvolvida e um exército também maior, com uma percentagem do PIB mais alta investida nas Forças Armadas e um número mais alto de militares por 100 000 habitantes; além disso, também tem um pouco mais de instabilidade no que toca à segurança em várias regiões. É por isso, com a complexidade dos 23 indicadores, que certos países ficam em posições diferentes de outros que lhes são semelhantes.
Neste Índice de Paz é possível identificar a civilização ocidental, falo da Europa Ocidental, da América do Norte, da Oceânia como líderes, afinal são 16 países no top 20. Há uma explicação cultural para isso?
Não tenho a certeza de que se possa identificar uma explicação cultural para isso. Quando olhamos para os Estados Unidos, por exemplo, vemos que eles estão quase no fundo do índice de paz global.
Mas além de países europeus, temos a Nova Zelândia, o Canadá...
Sim, o Canadá está perto do top 10 e é também comparável com países europeus, pelas razões que já expliquei. Quando olhamos para os EUA, por exemplo, e talvez para outros parceiros da NATO ou parceiros da maneira ocidental de olhar para o mundo e as relações internacionais, vemos que os Estados Unidos estão bastante para trás devido àqueles três domínios: implicação em conflitos, pois devido à sua postura global estão implicados na maioria dos atuais conflitos no mundo; na segurança interna, em relação a detenções, homicídios, perceção de violência, etc., eles também não estão bem classificados e todos sabemos porquê; em relação aos níveis de militarização, eles têm um dos orçamentos mais elevados do mundo.
Portanto, os Estados Unidos serão a exceção entre os ocidentais?
Claramente. Eles são um país ocidental, mas têm também este poder global, com implicações também globais, que gera algumas decisões a nível político sobre o investimento nas Forças Armadas que é uma espécie de projeção do seu poder no mundo. Portanto, o fenómeno que vemos na Europa, em que temos os países mais pequenos mais bem classificados e os maiores, implicados na geopolítica e com uma maior indústria militar, é exponencialmente exacerbado nos Estados Unidos com a sua presença global e o seu enorme investimento nessa indústria.
Há países que são verdadeiros bons exemplos de progresso nos últimos dez anos no Índice Global de Paz?
Sim. Podemos ver claramente países como o Butão, por exemplo, que é verdadeiramente um bom exemplo. Antes da guerra, a Ucrânia estava realmente a subir no Índice, a fazer os bons investimento, mas é evidente que tudo isso mudou completamente com a agressão russa. Vemos vários países a investirem seriamente na paz e nos sistemas de transformação das suas sociedades. Cada vez que elaboramos um Índice temos países que nos abordam e perguntam se podem fazer melhor ou se podem atingir uma melhor posição no Índice. Podemos ver claramente a ligação entre a paz positiva e a paz negativa. Por exemplo, quando analisamos os três domínios da paz positiva conseguimos identificar o impacto negativo que vem da atitude. Temos boas instituições e estruturas, mas as atitudes estão a deteriorar-se. Quando olhamos para a paz negativa na Europa, por exemplo, os níveis de agitação civil aumentaram entre 20% e 50% nos últimos dez anos, portanto vemos claramente a ligação entre o que estava a correr mal na paz positiva e o impacto direto na paz negativa. O que nós fazemos também é uma espécie de linha de força a que chamamos défice de paz positiva. Quando vemos que os países fazem um investimento menor na paz positiva do que a sua classificação na paz negativa no Índice de Paz Global. Isso diz-nos que esses países estão em risco de cair na armadilha da violência e quanto maior for o défice, mais alta é a probabilidade e a velocidade de caírem na violência. A ligação crucial entre o investimento feito e os resultados que se obtêm nos níveis de paz é evidente. É mais fácil compreender isso da perspetiva dos sistemas. O sistema da sociedade como ela é atualmente está numa forma que foi influenciada pelo passado. Chamamos-lhe dependência do passado do sistema. Nós somos aquilo que somos hoje devido aos acontecimentos e decisões do passado. A partir daqui é a decisão que manda, normalmente uma decisão política, se quisermos criar uma continuidade positiva, um ciclo virtuoso, ou negativa, um ciclo vicioso. Aquilo que nós estamos basicamente a explicar através da paz positiva é que o que é preciso fazer é alimentar os nossos sistemas em direção aos ciclos virtuosos, ou seja, altos níveis de paz positiva gerarão baixos níveis de descontentamento, portanto, virtualmente sem violência. Isso pode ser atingido através de mediação, negociação, que é o que vemos em Portugal, por exemplo. Num tal sistema não é necessário investir na contenção da violência e esses ativos podem ser investidos na paz positiva. Podemos imaginar o que acontece se for ao contrário: com baixos níveis de paz positiva temos altos níveis de descontentamento, violência e contenção de violência. Nós compreendemos que será sempre necessário alguma forma de polícia e de segurança interna, assim como um certo nível de forças militares, mas o que pretendemos atingir como think tank sobre a paz e a interseção entre a economia e a paz é uma situação em que poderemos reduzir a quantidade necessária de forças de segurança internas e externas ao mínimo, criando sociedades pacíficas.
Qual é a influência deste Índice? Existem países a mudar de políticas devido ao Índice?
Sem dúvida. Por exemplo, todas os peritos antiterroristas do mundo têm um Índice do Terrorismo Global, todas as organizações internacionais que lidam com terrorismo o usam como referência. O mesmo se passa com o Índice de Paz Global. Países, governos, geopolíticos, todos os parceiros o veem como uma referência e o estudam. Como já disse, todos os anos recebemos países que nos perguntam o porquê dos seus lugares na tabela, como podem fazer melhor e também perguntam a razão para terem descido, o que é que estão a fazer mal. Claro que é muito complicado, muito sistémico, mas podemos sempre tentar encontrar uma solução. Da minha própria experiência posso dizer que me tenho envolvido com alguns países. Houve um país asiático que me perguntou em Bruxelas se lhes podia dispensar algum tempo e apresentaram-me um PowerPoint onde me mostraram os elementos da sua política de segurança nacional, os 23 indicadores do Índice de Paz Global.
Essa é a influência positiva, mas também há uma influência negativa? Por exemplo, um país com uma classificação baixa no Índice sente essa influência no turismo, no investimento externo, etc.?
Nós também fazemos muita pesquisa nesse campo. Já trabalhámos com a Organização Mundial do Turismo e agora estamos a trabalhar num projeto com a Organização Mundial do Comércio e a analisar a interseção entre o comércio e a paz. Quando criamos o Índice, há uma classificação que é basicamente o reflexo dos dados que usamos. Portanto, não estamos a julgar países, são apenas as provas empíricas que vêm de dados claros e válidos. Estamos sempre abertos a trabalhar com os países para os ajudar a aumentar os seus níveis de paz. Nós somos um think tank que produz esta tabela baseada nos dados, mas também fazemos consultas com os países. Penso que uma das melhores coisas que estamos a fazer é formar muita gente neste conceito de paz positiva para a criação de sociedades mais pacíficas. Quando falo de pessoas estou a falar também de chefes de Estado e de governo, dos próprios governos e da sociedade civil. Queremos chegar ao maior número possível de pessoas com este conceito de paz positiva e explicá-lo para que possam investir na paz e, ao fazê-lo, possam criar também desenvolvimento económico. Nem sempre é necessário investir em desenvolvimento económico para o criar, é preciso investir na paz para criar sociedades mais pacíficas e obter assim benefícios económicos.
leonidio.ferreira@dn.pt