O clube que une portistas e benfiquistas sem rivalidades
Do interior, tantas vezes esquecido e ostracizado, chega um exemplo raro para um futebol português em quase constante guerra civil: um clube nascido da união entre portistas e benfiquistas - imortalizada no emblema e no equipamento (com influências cruzadas dos arquirrivais). A Associação Desportiva Recreativa e Cultural de Aguiar da Beira, dos campeonatos distritais da Guarda, é um oásis no clima inflamado que antecede todos os clássicos entre FC Porto e Benfica - como o de amanhã (20.30, no Estádio do Dragão, com transmissão na SportTV1). "Fomos sempre pelo lado da harmonia, do respeito e da amizade", resume Norberto da Conceição, um dos fundadores dos "cabicancas".
O emblema não engana: uma águia à Benfica junta-se a uma bola azul à FC Porto. A camisola também não: tem listas diagonais azuis e vermelhas sobre um fundo branco (enquanto calções e meias ora são azuis ora vermelhos). Ali, tudo foi pensado ao pormenor para não melindrar benfiquistas, portistas e demais adeptos que se juntaram para fundar, em 1981, a ADRC Aguiar da Beira. E, quase 37 anos depois, o símbolo, o equipamento e o espírito dos fundadores continuam bem presente. "Vivemos bastante longe de Lisboa e do Porto [330 e 160 quilómetros, respetivamente]. E, quando estamos no clube, estamos unidos. Conseguimos ver o futebol sem problemas nem rivalidades", explica, ao DN, o atual presidente do clube, Jorge Morgado.
Esta é uma história de desportivismo e persistência, no canto mais recôndito do futebol português - o distrito da Guarda, que nunca meteu uma equipa nas ligas profissionais e desde 2010 apenas teve, a cada ano, um clube nos campeonatos nacionais (que invariavelmente desceu de divisão e deu lugar a outro na época seguinte). O Aguiar da Beira, que gozou de três passagens breves pela antiga 3.ª Divisão (em 2003- -04, 2010-11 e 2012-13), está bem longe dos palcos mais mediáticos, mas ligado desde a nascença às maiores potências do desporto rei nacional.
Azul, vermelho... e faixa verde
"No núcleo de dirigentes fundadores, estávamos divididos entre adeptos do FC Porto e do Benfica. Então, decidimos juntar azul, branco e vermelho, no emblema e no equipamento. Se fosse tudo de uma cor, os do outro clube podiam ficar chateados. Assim, prevaleceu o bom senso", recorda, passados quase 37 anos, o benfiquista Norberto da Conceição, lembrando que, para agradar "ao senhor Afonso, o único sportinguista do grupo", o símbolo da ADRC Aguiar da Beira "também tem um bocadinho de verde" - a faixa onde, ao jeito do lema encarnado "e pluribum unum", se lê "os cabicancas" (cognome dos aguiarenses, devido a uma velha lenda local). "Havia, sem dúvida, um bom ambiente, com grandes dirigentes, que tiveram sempre o bom senso de deixar essas rivalidades de parte", acrescenta o portista José Luís, que também ajudou o clube a crescer, praticamente desde a fundação, a 19 de março de 1981.
Essa ascensão deu-se de forma gradual: "Nos primeiros tempos fiz de tudo: de jogador e treinador, árbitro ou cobrador de quotas", recorda Norberto da Conceição. E orgulha quem acompanhou os passos dos "cabicancas" desde o primeiro pelado até ao atual relvado sintético do Estádio Municipal de Aguiar da Beira: "Hoje é o clube com as melhores condições do distrito. Num raio de 60 quilómetros não conheço outro estádio com este nível", frisa José Luís. Mas não foi nada fácil. "É muito difícil lutar com equipas que têm muito mais meios do que nós", reconhece o presidente, falando das limitações de quem sustenta uma equipa totalmente amadora ("os jogadores recebem cem a 125 euros por mês, de deslocações e prémios de jogo") com um orçamento anual de 40 mil euros.
"Um exemplo para o país"
Ao leme de uma associação com uma importante vertente desportiva (é única a equipa com seniores e camadas jovens de futebol de 11 no concelho) e cultural (dinamiza também uma academia de música, que reúne 120 jovens aguiarenses e dos municípios vizinhos de Mêda, Trancoso e Moimenta da Beira), Jorge Morgado lamenta o alto preço da interioridade - "há poucos apoios e cada vez mais despesas; vai tudo para o litoral e esquecem-se do interior". Mas não se resigna: o objetivo é sempre pugnar por posições cimeiras (mesmo que a ideia de subir aos campeonatos nacionais e permanecer por lá seja apenas uma distante miragem). "Há 20 anos que nos mantemos nos primeiros lugares do distrital da Guarda. Mesmo com poucos jogadores e muitas contrariedades, lutamos sempre. Ainda no domingo, com três juniores em campo, conseguimos ganhar ao líder [o Sporting de Mêda]", nota o dirigente, que lidera o clube desde 1997.
Essa galhardia é uma das heranças dos fundadores - todos com mais de 60 anos e já afastados da gestão dos destinos do ADRC Aguiar da Beira. Outra é a sã convivência entre arquirrivais, embora agora haja "mais benfiquistas e sportinguistas do que portistas, nos órgãos sociais e no plantel", conta Jorge Morgado - ele próprio um simpatizante do emblema da águia. Este "espírito de união", que resiste na equipa beirã, enquanto os confrontos verbais entre dirigentes dos ditos grandes se tornam cada vez mais corriqueiros, "acaba por servir de exemplo para todo o país", diz José Luís.
Respeito sempre presente
No pequeno concelho da Beira Alta (5473 habitantes, segundo os censos de 2011), o clima inflamado dos clássicos fica fora de jogo. "A rivalidade que se vê por aí é uma vergonha. Aqueles programas de TV com os "paineleiros" de cada clube já me metem nojo. E os diretores deviam olhar mais pelo desporto e não alimentar esses ambientes", aponta Norberto. "Para defender o meu benfiquismo não posso deixar de aceitar o portismo ou sportinguismo dos outros", acrescenta o sócio-fundador da ADRC Aguiar da Beira. "Temos de respeitar as ideias dos outros. Afinal, uma pessoa até pode mudar de camisa, de mulher, de partido ou de religião, mas não muda de clube", anui José Luís.
"Conseguimos ser mais civilizados aqui no interior do que eles nos grandes centros", constata Norberto da Conceição, que gere um café repleto de material alusivo ao Benfica, mas onde "também se juntam portistas e sportinguistas a ver a bola". Provavelmente, esse será um dos espaços mais animados da vila à hora do clássico de amanhã. Mas não é por lá que os atuais dirigentes, treinadores e jogadores dos "cabicancas" vão parar. "O treino desta sexta-feira está marcado para mais cedo do que o habitual, para depois nos juntarmos todos a jantar e ver o jogo, na sede do clube, no estádio municipal", conta Jorge Morgado. Assim farão, com animação e sem rivalidades excessivas, claro está. "Tentamos honrar aquilo que os fundadores nos deixaram. Acho que temos de estar orgulhosos", conclui o presidente, na tal lição de harmonia, respeito e amizade, que por vezes falta nos campos mais mediáticos do futebol nacional.