O cinema e os seus silêncios

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Imagino que o leitor tenha a sua antologia pessoal de momentos de cinema que o marcaram de forma intensa e indelével. Não exatamente uma lista dos "melhores filmes de sempre", mas um conjunto de acontecimentos em que sentimos que o cinema consegue tocar na verdade mais indizível da dimensão humana.

Permita-me que evoque um desses momentos que associo ao poder de utilizar as imagens e os sons para além de todas as penosas ilusões televisivas segundo as quais as matérias audiovisuais seriam "reproduções", automáticas e imaculadas, do mundo à nossa volta. Está no filme Querido Diário (1993), de Nanni Moretti. A certa altura, vemos Moretti a rever alguns recortes de jornais com a notícia da morte de Pier Paolo Pasolini (ocorrida em 1975), ouvindo-o dizer que sentiu o impulso de ir visitar o local onde o cineasta foi assassinado, na zona costeira de Ostia. Na sua Vespa, Moretti surge numa longa deambulação pelos arredores de Roma, enquanto ouvimos na banda sonora o piano de Keith Jarrett, numa parte do Concerto de Colónia (1975). Quanto mais entramos naquele território (a câmara segue Moretti como uma espécie de guia revelador da paisagem), mais sentimos que o realismo dos lugares se vai transferindo para um saber enigmático, puramente interior. Por fim, Moretti mostra-nos o frágil e anódino "monumento" que assinala o local do crime e sentimos que, afinal, a morte é o fim de todos os símbolos. Por feliz paradoxo, há um simbolismo tocante no facto de Nanni Moretti nos visitar, agora, na abertura do LEFFEST. Ele é, afinal, um dos autores europeus que nunca desistiram de uma velha crença filosófica: o cinema mais pessoal é, ou pode ser, aquele que mais intensamente convoca as singularidades dos seus espectadores - mesmo perante o silêncio de todas as mortes.

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