O cinema conquista a sua Terra do Nunca

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Para filmar À Procura da Terra do Nunca, a equipa dirigida pelo realizador Marc Forster instalou-se nos estúdios britânicos de Shepperton. O facto tem uma ressonância simbólica que vale a pena sublinhar. Na verdade, de 2001 Odisseia no Espaço (1968), de Stanley Kubrick, a Gladiador (2000), de Ridley Scott, são muitos os filmes da moderna produção americana cuja rodagem, na totalidade ou em parte, passou pela Grã-Bretanha e, em particular, pelo know how dos seus técnicos.

Mais do que isso se há um fantástico contemporâneo em grande parte ligado ao imaginário americano, esse fantástico passa, paradoxalmente, por gostos e sensibilidades de raiz britânica. À Procura da Terra do Nunca, sem dúvida a mais bela surpresa deste final de ano cinematográfico, acaba por ser, justamente, um magnífico exemplo de uma atitude criativa que vive de muitas sínteses temáticas e formais.

Em primeiro lugar, estamos perante um filme «biográfico» sobre James M. Barrie (1860-1937), o autor de Peter Pan; mais concretamente, o argumento de David Magee adapta a peça de Allan Knee, The Man Who Was Peter Pan, centrada na relação de Barrie com a jovem viúva Sylvia Llewellyn Davies e os seus quatro filhos, um dos quais (Peter) terá inspirado a personagem do «rapaz que não queria crescer». Depois, a Terra do Nunca, cuja descoberta literária o filme encena, nunca nos é apresentada como um mundo alternativo, mas sim como uma paisagem cujas componentes originais pertencem à vida vivida por adultos e crianças (isto sem prejuízo de Marc Forster recusar qualquer realismo «factual», típico de telefilme). Finalmente, À Procura da Terra do Nunca é um desafio, a um tempo estético e ético, à obscenidade televisiva reinante que conseguiu reduzir as representações correntes das crianças a um de dois estereótipos vítimas sempre ameaçadas ou caricaturas de uma inocência sem vida.

Neste aspecto, a realização de Marc Forster é tanto mais admirável quanto o seu filme anterior, Monster's Ball - Depois do Ódio (com o qual Halle Berry arrebatou o Óscar de melhor actriz referente a 2001), poderia fazer-nos pensar que o realismo mais cru seria o seu registo de eleição. Não que À Procura da Terra do Nunca seja o contrário de Monster's Ball (podemos até dizer que ambos os filmes partilham a mesma crença na verdade intrínseca, porventura inclassificável, de qualquer desejo humano, do mais poeticamente abstracto ao mais explicitamente sexual). Em todo o caso, para contar a história da gestação humana e literária de Peter Pan, Forster parece querer conduzir o cinema a qualquer coisa como a sua própria Terra do Nunca. Neste sentido À Procura da Terra do Nunca é menos um filme sobre o cinema como testemunho de um qualquer real, seja ele «exterior» ou «interior», e mais sobre o modo como o cinema é (ou pode ser) uma máquina capaz de inventar uma nova percepção dos seres e das coisas. Como se, no limite, a criação artística não fosse um gesto de «comentário» sobre o sentido do real, mas sim a sua libertação de qualquer sentido.

Compreende-se, assim, que À Procura da Terra do Nunca seja, em última instância, um simples e, à sua maneira, radical filme sobre o amor Barrie vê nas crianças, não os destinatários das suas «mensagens», antes os duplos luminosos dos seus próprios enigmas interiores; do mesmo modo, ele lida com Sylvia, não como a mulher a «conquistar», mas sim como aquela que, por amor, está para além de qualquer noção de «posse». Nesta perspectiva, este é também um filme que devolve ao fantástico a sua dimensão mais primitiva: a de ser, não uma fuga para «cenários» transcendentes, mas sim um mergulho nos labirintos mais indizíveis do próprio ser humano.

É um pequeno milagre que Johnny Depp consiga representar esse Barrie, sempre estranho à falsidade das máscaras sociais, como se a beleza da sua indiferença nascesse de uma naturalidade alheia a qualquer culpa ou preconceito. Tal como a mise en scène de Marc Forster, Depp passa do «concreto» para o «artificial» com serena agilidade, dir-se-ia que com a elegância típica de uma personagem de fábula. Sempre com infinito respeito pelo riso e pela seriedade das crianças.

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