O cinema celebra a alegria do teatro

Para François Ozon, fazer cinema continua a ser uma aventura próxima do teatro. O seu novo filme, <em>O Crime É Meu</em>, inspira-se numa peça de 1934, propondo um exercício de memória e humor sustentado por um magnífico elenco - com destaque obrigatório para Isabelle Huppert.
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Será que o cinema ainda tem o gosto das palavras e da arte de as dizer? Contrariando esse gosto, os super-heróis têm imposto os grunhidos das personagens como forma de comunicação. Por vezes, um grito histérico basta para fazer explodir um planeta inteiro... Na melhor das hipóteses, perante as ruínas digitais, alguém virá apresentar uma moral monossilábica capaz de justificar a sequela já em pré-produção. Digamos, para simplificar, que a estreia de O Crime É Meu, a mais recente realização do francês François Ozon, é a antítese de tudo isso. A saber: uma celebração das palavras - imensas, sofisticadas, saborosas, ora sensuais, ora burlescas - como matéria vital do cinema.

Dito de outro modo: Ozon continua a ser um amante do teatro, neste caso adaptando a peça Mon Crime, um texto de 1934 da autoria da dupla Georges Berre/Louis Verneuil. Na sua filmografia já existiam vários títulos inspirados em obras teatrais, incluindo Gotas de Água sobre Pedras Escaldantes (2000) e Peter von Kant (2022), ambos remetendo para peças de Rainer Werner Fassbinder, ou ainda esse delicioso musical que é 8 Mulheres (2002), baseado em Robert Thomas; exemplo singular é Frantz (2016), melodrama construído a partir de memórias da Primeira Guerra Mundial, inspirado no filme O Homem que eu Matei (1932), em que Ernst Lubitsch tinha como ponto de partida uma peça de Maurice Rostand. Curiosamente, existem duas versões de Mon Crime produzidas em Hollywood: São Assim as Mulheres (1937), de Wesley Ruggles, e A Mentirosa (1946), de John Berry, protagonizadas por Carole Lombard e Betty Hutton, respectivamente.

O fino humor de O Crime É Meu é tanto mais envolvente quanto esta é uma história de meados da década de 1930 em que todos os detalhes vão sendo contaminados pelo teatro, ou melhor, por alguma teatralidade. Desde logo, porque Madeleine (Nadia Tereszkiewicz), uma actriz que procura trabalho, é acusada de assassinar o empresário teatral que tem um papel para lhe oferecer; depois, porque esse crime (o "meu crime", como diz o título original) vai deixando de ser um acontecimento objectivo para, através da alegação de legítima defesa arquitectada pela advogada Pauline (Rebecca Marder), se transformar num inusitado delírio de possibilidades de ascensão profissional e social...

O esquema policial que assim se pressente evolui através de peripécias cada vez mais surreais. Há mesmo um procurador, interpretado pelo sempre impecável Fabrice Luchini, que vive num permanente exercício de dedução racional (diz ele...) que o conduz aos mais belos disparates argumentativos. Sem esquecer, claro, a personagem de Odette Chaumette que entra de rompante neste universo de muitas máscaras - ela própria exibindo os artifícios de uma estrela algo esquecida do cinema mudo - para reclamar, literalmente, a responsabilidade do crime de Madeleine e exigir que seja ela a sentar-se no banco dos réus... Enfim, se outras razões não houvesse para nos maravilharmos com a alegria de O Crime É Meu, a personagem de Chaumette, numa esplendorosa (e divertidíssima!) composição de Isabelle Huppert, seria suficiente para nos esclarecer sobre a genuína paixão cinéfila do empreendimento.

A cinefilia, entenda-se, envolve uma perspectiva dupla. Assim, em primeiro lugar, trata-se de conceber o cinema do presente através da militante preservação das memórias da sua história - Ozon filma mesmo Madeleine e Pauline a irem ao cinema ver Mauvaise Graine (1934), primeira realização de Billy Wilder, com Danielle Darrieux, figura maternal de todas as suas actrizes (recorde-se que 8 Mulheres foi um dos derradeiros filmes de Darrieux, ao lado de Huppert e também, entre outras, Catherine Deneuve e Fanny Ardant).

Depois, importa recordar que o gosto pela ambivalência das situações está longe de existir como um mero exercício formalista (mesmo não esquecendo que este é um filme que assume, sem preconceitos, a ligeireza herdada da tradição do vaudeville). Através da surpreendente diversidade de "géneros" que já explorou - do drama à comédia, do musical ao conto erótico -, Ozon é um metódico analista dos enigmas do desejo e da fragilidade intrínseca de qualquer relação. No limite, cada relação é mesmo encenada como um jogo de verdade/mentira que pode oscilar entre o frívolo e o trágico - como num teatro, apetece dizer.

Enfim, nada que seja o crítico a "descobrir"... Em diversas declarações a propósito de O Crime É Meu, Ozon tem dado conta da sua dívida em relação a Jean Renoir e François Truffaut (poderíamos acrescentar Sacha Guitry, mestre de todas as teatralidades). Numa entrevista à revista Variety (14 janeiro 2023), citou ainda Victor/Victoria (1982), de Blake Edwards, com Julie Andrews, como exemplo de uma certa visão "romântica" de Paris naquela mesma época, lembrando também que a personagem de Huppert foi inspirada na referência lendária de Sarah Bernhardt (1844-1923). Para que fique tudo em família, vale a pena acrescentar que Verneuil, um dos autores da peça Mon Crime, foi casado com Lysiane Bernhardt, neta de Sarah Bernhardt...

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