O ciclo da vida
Quando aqui não estás/ o que nos rodeou põe-se a morrer
Al Berto
Passo o batom nos lábios e, pela primeira vez em meses, vejo o meu sorriso: um artifício que dura apenas um instante, a ginástica de boca necessária para que o vermelho permaneça dentro dos contornos, um truque que não enganaria ninguém. Cerco as pálpebras com lápis, dilato as pestanas com rímel, mas parece-me que escavo o próprio rosto como se procurasse, sem efeito, as feições que morreram contigo. "Estou com má cara?", perguntava-te, e tu dizias sempre que não, escrevias versos sobre a palidez e as olheiras da minha cara de ressaca, a mesma que tento abrilhantar agora diante do espelho, sabendo de que nada vale a maquilhagem quando antes tinha poesia.
Três saias em cima da cama, as botas e os sapatos no chão. Toco um frasco de perfume e recuo porque, ainda que tenham levado as tuas coisas - a lâmina de barbear com pelinhos, as camisas com manchas amarelas de suor -, a verdade é que, quando aqui não estás, o que nos rodeou põe-se a morrer. Primeiro foram as plantas, não esperaram sequer pela missa do sétimo dia, a minha irmã a perguntar, "Tens regado as bichinhas?", e a escolha da palavra "bichinhas" e a sua voz esganiçada já não capazes de enfurecer-me, nem sequer quando comentou a minha roupa como fazia desde os doze anos, "Não tens de ir toda de preto, não és a viúva de um pescador." Ela abria a boca, bolçava uma frivolidade, "Devias consultar-te com o meu astrólogo", regurgitava um despropósito, "Há mais marés que marinheiros", e eu tinha a certeza de que algo expirava à nossa volta, as pilhas gastas no comando, o bico elétrico do fogão emitindo estalinhos mas nenhuma chama, o autoclismo a correr toda a noite, o caixilho da janela tremendo dos ossos, um botão a saltar do casaco.
O padre ofereceu-me consolo nas escolhas sábias, mas insondáveis, do Senhor, os amigos prestaram-se a ficar cá em casa, dividindo turnos, levando sub-repticiamente todo o álcool e sussurrando "Ela não vai dar conta disto sozinha, ainda volta a beber", sem perceberem que nem Deus nem vodka faziam parte da minha missão: construir um relicário de palavras antes que este apartamento fosse uma paisagem carbonizada - os ímanes do frigorífico que caíam da porta, um pássaro que se despenhou contra a marquise, o chão rangendo como um casco no fundo do mar, a ferrugem alastrando nos talheres, os elásticos da roupa cada vez mais lassos, os meus cabelos na almofada que se transformavam imediatamente em cotão nas esquinas.
"Ela está deprimida, precisa de comprimidos", diziam, e eu a escrever no teu caderno tudo o que me lembrava, as páginas dos teus poemas seguidas por outras com a minha letra, uma lista a que todos os dias eu somava, de uma forma adolescente, as tuas iniciais e entradas como "Tem as mãos pequenas, mas agarra-me com força" ou "Não se põe a fazer-me perguntas quando estou a arranjar-me" ou "Deixa-me dormir até tarde", uma lista tão inútil como sublime, uma artimanha apenas, que procurava protelar o apodrecimento imparável de toda a matéria.
Queria estancar a morte mas a casa esfarelava-se todos os dias: lâmpadas fundidas, canetas que não escreviam, eu a abrir o armário da casa de banho e as caixas dos testes de ovulação desabando sobre mim com o mesmo peso irremediável da terra que tinha sido chicoteada para cima do teu caixão. Não era um estalo na cara, o baque do tiro, não era nada que acontecesse no peito ou no poço do estômago, mas antes a clarividência da dor, uma lucidez seca, o corpo inteiro sugado para um ponto mais alto, arrancado do tempo. Não foram precisos poemas nem listas cinematográficas dos melhores momentos da nossa vida para articular em voz alta (e aceitar) a evidência mais importante de todas: tu morreste.
Não sei ao certo quanto tempo passou (semanas, meses?) desde que me ajoelhei na casa de banho para apanhar, um a um, os testes de ovulação. Talvez não o tempo suficiente para que volte a usar maquilhagem, preocupada agora em agradar o homem que me convidou para sair. Ensaio mais um sorriso no espelho, ajustando o batom, e desaperto a saia, sento-me na retrete, pego na tirinha do teste, abro a torneira do lavatório como fator de sugestão, espero o resultado e, ao ler na bula "Período fértil", penso na pá a cobrir-te de terra, uma ideia de renovação permanente, nada se perde, tudo se transforma, a suspeita de que talvez não sejamos mais do que o determinismo biológico a preservar a espécie, um outro género de vírus ganancioso e egoísta.
Levanto-me, aperto a saia, verifico o batom e sorrio - desta vez genuinamente - quando imagino o que aconteceria se, mais daqui a pouco, quando estiver despida na cama de um estranho, dissesse em voz alta aquilo que me vai na cabeça: "Não pares, estou no período fértil."