"O cheque-dentista é como pôr um penso rápido numa artéria rasgada"
Quando nos encontramos no Pasta non Basta, nas avenidas novas, Miguel Stanley acaba de chegar de Nova Iorque, onde esteve durante três dias, convidado para dar uma palestra na New York University e ainda está a sofrer um pouco de jet lag, apesar de não lhe ser estranha esta dinâmica - metade dos fins de semana do ano estão reservados para este tipo de encontros na Europa, nas Américas e na Ásia, onde se debate as últimas novidades da medicina dentária e é convidado a falar e fazer apresentações, mas insiste que vai é "aprender, para estar sempre à frente e melhor poder ajudar" os seus clientes. Para algum cansaço também deve contribuir o facto de ter um bebé em casa: Luna nasceu há dois meses e Miguel não se cansa de repetir a admiração pelas mulheres, multiplicada desde que a sua, Sasha, teve a filha. "Ser pai é incrível, estou a adorar", confessa, ainda antes de entrar no tema que nos levou ali.
Tendo escolhido um restaurante italiano para o nosso almoço, o dentista e diretor clínico da White Clinic não terá oportunidade de ali comer um dos seus pratos preferidos, spagetti vongole, mas aceitará a sugestão do dia, tal como eu: um risotto com gorgonzola e espinafres que nos soa muito bem e há de comprovar estar mais do que à altura das expectativas. Porque o dia está quente e Miguel segue uma alimentação saudável - "sobretudo produtos biológicos, do local e da época, por razões de saúde e para reduzir a nossa pegada" -, vai manter-se na Pelegrini e eu faço-lhe companhia com um chá preto com limão, laranja e canela que não me deixa arrepender por ter prescindido da habitual imperial.
O ambiente jovem e informal do Pasta non Basta facilita a fluidez da conversa. Por esta altura, Miguel Stanley vai-me contando que está perto de publicar um livro que está a escrever há dois anos sobre um tema que o apaixona e que há de acompanhar-nos à mesa: "Porque é que a boca não faz parte do corpo?" Traduz a pergunta com uma legenda simples: os problemas de boca são secundarizados e os médicos dentistas são em tudo considerados diferentes (menores?) de qualquer outro especialista. E junta uma imagem para melhor comparação: "Quando temos problema nos olhos não operamos só 10% de cada vez porque é mais fácil, para o seguro cobrir... mas com os dentes fazemos isso. Quão errada esteve a evolução da medicina para pensarmos assim? Como é que pensamos desta forma sobre a única parte do nosso corpo que está em contacto com bactérias e o osso que produz a medula?"
A verdade é que há uma resposta histórica: até há um par de séculos, barbeiro e tira-dentes eram uma e a mesma profissão - e tratá-los era coisa que não cabia na cabeça de ninguém quando se podia simplesmente arrancar o problema pela raiz. Porque a medicina dentária é também o seu hobby, Stanley tem-se dedicado a estudar o assunto. Explica-me que este ponto de partida levou à criação de faculdades diferentes, separou as escolas para dentistas das dos restantes médicos e a especialidade foi-se desenvolvendo de forma distinta em cada região do mundo. "Hoje há 780 faculdades e esta é uma indústria de 480 mil milhões anuais que conta com 2,2 milhões de dentistas para os 7 biliões de pessoas que há no mundo. E com profundas diferenças. Por exemplo: o tempo médio de consulta no NHS inglês é de 15 minutos, mas é também esse o país onde mais se processam dentistas. Há interpretações totalmente diferentes a 50 metros de distância."
Aponta como grande fragilidade o facto de não haver uma "polícia nos dentistas, quem estabeleça limites. Uma clínica que luta para ganhar clientes - e essas coisa demoram tempo - e tem custos elevados, que tem uma renda caríssima, tecnologia de ponta e consegue fazer ofertas... Alguma coisa falha aqui, tem de estar a cortar em algum lado." Mas Miguel gosta pouco de falar dos outros, sobretudo mal - prefere seguir o seu lema, "be part of a better game". E rapidamente passa a explicar que há "dentistas dente a dente e os dentistas da boca toda" e lugar para todos. "Não vejo problema nenhum, por exemplo, em que a Dr. Wells, da Sonae, tenha dentistas. É o maior grupo económico do país, podem aguentar-se pacientemente os primeiros anos mantendo a qualidade... E não vejo os 10 mil dentistas que há em Portugal a resolver os problemas de todos os portugueses, porque têm de ganhar dinheiro."
Um delicioso aroma a queijo gorgonzola anuncia a chegada do risotto e pedido reforço das bebidas, Miguel vai detalhando porque ele próprio faz parte de um grupo diferente de dentistas . "As clínicas dente a dente cobram mais barato e quanto mais clientes encaixam por dia, melhor. Nós temos um ou dois por sala, por dia, mas fazemos muito mais. São campeonatos diferentes. A minha perceção de problemas de dentes inclui a cara, o corpo todo, e isso depende do tempo que se passa com o cliente e também de quanto se paga."
Compara o que faz na White Clinic, com a ajuda de uma equipa de 12 dentistas, muitos deles jovens, e apoio de gabinetes de investigação, a um restaurante com estrela Michelin - os exemplos a compensar as falhas de quem fala um português que não é língua materna. "O que há atrás dos consultórios é três vezes maior, é um verdadeiro laboratório do futuro onde investigamos, temos acesso e preparamos artigos científicos, tentamos criar tratamentos futuristas. Eu entretenho-me imenso com isto, é como se estivesse a brincar com Lego." Mas o que mais o preenche é o resultado deste empenho para estar sempre à frente, a par da última tecnologia e em contacto com especialistas, laboratórios, materiais e a tecnologia mais recente. Que se materializa na ajuda que pode dar a quem mais precisa. "Já ajudámos muitas pessoas", sublinha, mas destaca um caso recente que o marcou. Dá o nome porque foi tornado público pelo Maria Capaz, que chamou a si a missão de ajudar Tânia Costa, uma jovem de 27 anos que ia perder o filho de 4 porque estava sozinha, sem emprego nem dinheiro. Nem dentes, o que era um impedimento brutal a que conseguisse dar a volta. O blog pediu que interviesse e Miguel aceitou. "Já vi muita coisa má, mas esta miúda tinha perdido a humanidade. Fiz-lhe logo uma placa e mudou imediatamente." Então pôs-se em contacto com empresas de todo o mundo que estão a produzir as técnicas mais avançadas de implantologia e impressão 3D, enviou-lhes o caso de Tânia e pôs jovens dentistas da White a liderar o processo "para mostrar que esta nova geração conseguirá fazer coisas muito boas com alta tecnologia". "Eu doei o tempo, as empresas emprestaram a tecnologia e ofereceram os implantes - colocados com cirurgia guiada, 100% digital - e ela saiu dali outra pessoa." Semanas depois de um tratamento que custaria uns 40 mil euros, Tânia já tinha emprego, namorado e uma vida.
Claro que há muitos casos semelhantes e outros menos radicais mas igualmente preocupantes. E se um dentista privado é caro e inacessível a muitos, "no SNS há poucos e com incríveis listas de espera", critica Stanley. Pode o cheque-dentista ajudar à solução? "Isso é pôr um penso rápido numa artéria rasgada. Com mais de 1 milhão de pessoas a sofrer dos dentes em Portugal, o cheque-dentista não vai ajudar nada, 35 euros fazem o quê por uma pessoa que tem 32 dentes - cada um deles com uma componente física, mecânica, estética e biológica... No mesmo dente pode ter de se fazer cinco intervenções distintas. É essa a minha guerra: tem de haver mais sinergias, em vez de se encarar todos os outros como concorrência. Nas faculdades não treinam os dentistas para serem humanos, só os ensinam a ser técnicos - e eles nem têm ideia do que se gasta em material, fornecedores, recursos humanos, etc., não sabem fazer a relação entre custos e necessidades de receita. E nem sequer há benchmarking - se eu abrir uma clínica de cardiologia, o que se faz no Estado é a fasquia, mas isso aqui não existe... É preciso mudar mentalidades, convencer os dentistas a doar tempo para ajudar as comunidades."
Foi assim que Miguel Stanley conseguiu sensibilizar as empresas para o caso de Tânia. "Há poucos que fazem o que nós fazemos na White, há tantos anos e documentando o trabalho - e este é um caso que poderão também apresentar. Eu faço isto há mais de 15 anos, as pessoas conhecem-me. Este ano falei para 20 mil dentistas (online chegavam a 100 mil) e nas palestras digo sempre: deem à comunidade, se tiverem tempo livre devolvam alguma coisa à comunidade. Gasta-se tanto em anúncios e redes sociais... esse dinheiro pode ajudar alguém - e a publicidade de boca a boca tem mais resultados."
Stanley sabe do que fala: os últimos anos foram passados a reconstruir a sua reputação depois de o desvio de dinheiro por parte de um sócio ter rebentado com o projeto para a megaclínica em Santos - que juntava aos tratamentos dentários uma componente estética completa e um spa de cinco estrelas. "Eu fui muito criticado - também pelos programas de televisão que fiz (Dr., Preciso de Ajuda e Dr. White) -, fui atacado, não foi fácil, mas deu-me energia para fazer melhor. É como diz Richard Branson, kill them with your success." Sobre esta fase da sua vida, gosta pouco de falar, mas não nega respostas.
À distância de quase uma década, o que correu mal? "Olhando para trás, é fácil ter uma visão 20/20, mas o que precipitou tudo foi a crise, depois do roubo. Eu fui roubado - ele apanhou quatro anos de cadeia -, mas consegui, sete anos depois, estar aqui. Alguma coisa boa devo estar a fazer. Passei os últimos sete anos a trabalhar na minha reputação, porque acredito que nada importa se não houver substância. E ainda quero ir mais longe, há coisas que quero fazer."
O que mais o ajudou a recuperar o bom nome, diz, foi nunca ter tido problemas com pacientes. "Sou muito bom médico dentista, sou bom a tratar pessoas", sublinha. "O que mais clientes me trouxe em 20 anos foi tratar bem as pessoas, técnica e humanamente, não andar a contar tostões mas querer criar sorrisos." De facto, lá fora já é conhecido como o jovem dentista influenciador de uma nova geração. E ainda este mês teve um sinal de que afinal a sua passagem pela televisão teve um lado positivo: a nova médica da White Clinic formou-se em Medicina Dentária e procurou-o porque foi ele que a inspirou a seguir aquele caminho.
Esse é um lado de que Miguel se orgulha, sobretudo quando recorda como aqui chegou. É já com os risottos terminados e a fazer tempo para os cafés que me conta episódios como os dois anos em que trabalhou em Almancil, no início da carreira. Ou a forma como a intervenção de um dos pais da medicina estética dentária, Ronald Goldstein (da Goldstein, Garber & Salama), numa palestra a que assistiu em 1997 na faculdade o inspirou a criar uma clínica semelhante, com especialistas para cada área. Ou ainda como o seu primeiro contacto profissional com clínicas dentárias resultou de um emprego como estafeta arranjado com cunha de um colega que trabalhava num fornecedor de moldes. Apesar de ter pai engenheiro - a mãe ficou em casa a tomar conta de três filhos -, Miguel sempre quis ser médico. E como o investimento para tirar a primeira escolha, cardiologia, era demasiado, optou pela medicina dentária, onde poderia começar logo a ganhar dinheiro.
Hoje, acredita que ainda tem muito caminho a fazer e há mudanças a que gostava de assistir. "Gostava de ver o público perceber melhor o nosso lado da vedação e vice-versa. E que este negócio fosse mais transparente. Porque é que não podemos ser como os hotéis, onde se identifica logo à porta se tem 2 ou 5 estrelas e a pessoa sabe imediatamente ao que vai?" No caso da White, que pertence aos Leading Dentists of the World e que tem metade dos clientes fora do país, seria certamente uma vantagem. Com os cafés já servidos, diz-me que o seu papel enquanto diretor clínico é "evitar chatices". "E se conseguirmos ficar no breakeven está tudo bem - as margens são poucas, mas antes de mais é preciso ser transparente e não vender gato por lebre." E acrescenta: "O diagnóstico baseado na parte financeira está a matar a medicina dentária."
Confessa que metade das pessoas que o procuram não chegam a fazer o tratamento. A justificação é que "o cérebro gestor ganha ao lado clínico. As pessoas pensam que não têm dinheiro para tudo e imediatamente tentam negociar o que podem fazer por menos. Mas isso não resolve realmente o seu problema e se o lado clínico não fica bem, vai sentir-se frustrada com o que gastou e o lado emocional também não fica bem. Demorei 20 anos a perceber isso."
Lamenta que o Estado não tenha consciência dos custos que têm os dentistas e sublinha que "é muito difícil ser dentista em Portugal", mesmo porque metade da classe tem menos de 30 anos, trabalha em condições de alta pressão e vulnerabilidade, a receber um salário mínimo que é dos mais baixos da Europa por trabalho de grande stress e responsabilidade. "E não há uma cultura de respeito pelos dentistas como a que temos pelos outros médicos".
Stanley acredita que com discussões simples era capaz de se entender melhor o que está em causa. Como o processo de substituição dos chumbos nos dentes por massa, o tratamento mais básico que existe: o método antigo demorava 20 minutos, o novo 45 a 60; o compósito branco que agora se utiliza e o material requerido para a sua aplicação são várias vezes multiplicados; o custo de um tubinho de massa para um dente equivale ao de 20 chumbos. E no entanto esses custos acrescidos não passaram, em proporção, para os pacientes - foram absorvidos na sua maioria pelos dentistas. "Como dizia Shakespeare, algo está podre no reino da Dinamarca - aqui são os dentes."
A conta chegou à mesa e foi preciso lutar para ficar do meu lado - só o argumento repetido de que é marca desta rubrica ser o DN a convidar é que o convenceu a largar a carteira e a deixar-me pagar. E enquanto a fatura não vinha, quis saber mais do que fazia quando não estava a pensar, estudar ou trabalhar com dentes. "Pode parecer estranho, mas quando não estou na clínica ou a escrever, a trabalhar nas palestras, estou com a família e amigos ou a descansar, a ver séries no Netflix ou a ler. Sou apaixonado pelo que faço, sou feliz, gosto da vida que hoje tenho e adoro viver em Portugal."
Quando lhe pergunto onde vê a sua profissão daqui a dez anos, não hesita: a tecnologia é o caminho. "Recentemente escrevi um artigo sobre o dentista 4.0, como a tecnologia vai ajudar a mudar tudo - da parte laboratorial ao custo de fazer uma coroa de cerâmica, por exemplo, que em vez de levar oito horas de trabalho de um técnico, feito dente a dente, pode ser feita por um robô em metade do tempo e a custar metade. E isto já acontece: fi-lo na minha clínica na semana passada, um trabalho totalmente planeado no computador, em 3D, com as facetas fabricadas por um robô. É um trabalho de 35 mil euros (30 dentes). O laboratório que faz isto só trabalha com 250 clínicas no mundo inteiro. E isto é ótimo para o paciente, porque é mais rápido e o custo há de baixar nos próximos anos; e se alguma faceta se partir, é só imprimir uma nova, em qualquer parte do mundo, porque o ficheiro é digital."
São estes importantes passos, explica-me já na rua enquanto esperamos o Uber, que o fazem crer que "em dez anos, os Velhos do Restelo estarão a ser substituídos por médicos mais abertos, adaptativos, que pensam coletivamente". E encontra um último paralelo aqui: "Os táxis melhoraram imenso de qualidade e os maus taxistas vão acabar por ficar desempregados ou a pedir que os salvem. Isto vai acontecer também na medicina dentária: muitas clínicas vão perder o barco, vão perder clientes, se não olharem para estas tendências e não entenderem que os melhoramentos não são feitos de três em três anos mas todos os dias. No fim do dia, o público merece um bom tratamento." E remata, antes de nos despedirmos: "Estamos a assistir à uberização dos dentistas. Quem não apanhar o comboio vai ficar pelo caminho."
Pasta non Basta
Água San Pellegrino
Chá preto com citrinos
Risotto com gorgonzola e espinafres
Cafés
Total: 28,20 euros