O chef que joga na Liga dos Campeões da gastronomia

Brunch com Vladmir Veiga, chef dos restaurantes Arola e Lab by Arola. "A minha cozinha funciona com espírito de equipa, foco e exigência diária e isso tem tudo a ver com o futebol"
Publicado a
Atualizado a

Em meados dos Anos 1990, Maria Alice veio de Cabo Verde para viver em Lisboa. Pela cidade e arredores arranjou dois empregos para ajudar a criar os filhos e a sustentar a sua casa na Margem Sul do Tejo. Mudou de país e continente para ter "uma vida melhor". Na intensa jornada diária ensinou os três filhos a nunca virarem a cara à luta. E alertou-os de que nada lhes seria dado de mão beijada, incentivando-os a desenrascarem-se. Assertiva, não fabulou a vida e o futuro avisou-a de uma certeza absoluta: as dificuldades que iriam surgir ao longo das suas vidas.

Um dos filhos, Vladmir, teve, desde cedo, a tarefa de cozinhar para si e para o resto da família - aprendeu com a mãe, que era cozinheira em casa particulares. E se na altura era o futebol que comandava o sonho de vida de Vladmir, foi a obrigação rotineira entre tachos e panelas que, mesmo sem perceber, lhe moldou o futuro. Hoje, aos 31 anos, é chef e "joga", todos os dias, na Liga dos Campeões da Gastronomia num restaurante com estrela Michelin

Para saber o princípio, o meio e vislumbrar o futuro de Vladmir Veiga, fomos ao seu encontro num dos locais mais luxuosos da Grande Lisboa: o resort Penha Longa. A sua atual "casa", onde é o chef residente da cozinha dos restaurantes Arola e Lab - este último com uma estrela Michelin desde 2016 - dos quais o catalão Sergi Arola é o chef principal e a que regressa episodicamente do Chile para acertar detalhes com Vladmir.

Atrasos no trânsito a caminho do Penha Longa levaram-nos a anular o brunch e a antecipar uma refeição ligeira, de tapas, ainda antes da hora do almoço. O chef fez o pedido: Gambas al ajillo, pica-pau e croquetes de cogumelos acompanhados por tiras de pão tostado. Pediu para si uma água com gás, gelo e limão e uma cerveja para o jornalista. A conversa começou com o recordar de uma reportagem feita para o Diário de Notícias no restaurante Lab meses antes da pandemia da covid-19. Nessa noite, enquanto o chef Sergi Arola apresentava o conceito do restaurante a este mesmo jornalista, ficou na memória a forma como o seu braço-direito, o chef Vladmir, com os seus mais de 1,90m de altura, comandava e alinhava a brigada de cozinha com os seus recados quase impercetíveis ali e acolá, num misto entre um maestro sereno e um capitão de equipa de futebol. A analogia não é descabida uma vez que é conhecido, pelo menos de alguns, o passado do chef como jogador de futebol.

A conversa, agora no presente, começa mesmo por aí. E quando fala de futebol o chef Vladmir sorri com os olhos. Confessa mesmo que só depois de ter ganhado a primeira estrela Michelin é que deixou de pensar no futebol para o seu futuro. Recorda a primeira vez que chegou ao Penha Longa para um estágio na cozinha, depois de sair do Centro Profissional do Seixal, onde tirou Cozinha e Pastelaria , tinha então 18 anos. "Viemos três alunos estagiar e disseram-nos logo que para ficar era necessário dar mesmo o máximo". Deu e ficou. Até que passados três anos saiu para o restaurante da Fortaleza do Guincho, casa de chefs de renome e com estrela Michelin. E por lá trabalhou com o francês Vincent Farges (hoje no restaurante Epur também com uma estrela Michelin). Depois ainda passou por Espanha, pela cozinha liderada pelo conceituado chef espanhol Quique Dacosta (que tem um dos seus restaurantes com três estrelas Michelin). Depois, em 2015, regressou à Penha Longa, para o Lab, para ser o segundo cozinheiro de Sergi Arola. E passado um ano de "trabalho árduo com uma equipa muito pequena" chegou a estrela Michelin. "Foi uma grande emoção, uma noite de choro pelos sacrifícios que fizemos enquanto equipa. Foi como se tivesse ganhado uma Liga de Campeões, uma noite fantástica". E foi precisamente a partir desse momento que as dúvidas de continuar ou não uma carreira na cozinha se dissiparam. "Tinha muitas dúvidas quando saí da Fortaleza do Guincho. Trabalhar lá foi um choque muito grande, não estava preparado mentalmente para o nível de exigência, e, ao mesmo tempo, ainda alimentava a esperança de jogar futebol. Foi a pior e, ao mesmo tempo, a melhor fase em termos de trabalho e de vida. Passei por situações em que pensei desistir." Mas não o fez. Talvez reflexo dos ensinamentos estoicos da mãe Maria Alice.

Vladmir chegou a Portugal com 13 anos, depois de seis longe da mãe, criado por tios e pela avó. O choque foi muito grande. "Costumo dizer, e não deixa de ser irónico, que vivia bem até chegar a Portugal. Por cá vi muitas dores, a minha mãe sempre foi solteira e via-a a fazer muitos sacrifícios, a ter dois empregos e, mesmo assim, o dinheiro a não chegar. Fui acumulado essas dores e fui ganhando maturidade. Lembro-me que, aos meus 14 anos, comecei à procura de emprego nas férias da escola. Em frente à minha casa havia uma carpintaria e uma oficina e tentava sempre ir ajudar fosse a limpar carros ou a carregar madeiras para ganhar dinheiro. Aos 15 anos fui distribuir panfletos e, como morava na Margem Sul, aproveitava a Festa do Avante! para ir arrumar carros, sempre com o objetivo de ajudar em casa. Isso tudo deu-me uma sede de sair daquela realidade. E a minha mãe mostrou-me exatamente o que devia fazer", recorda. Acredita que tudo isso, e os ensinamentos maternos ajudaram-no a ter muita ambição. "Procurei sempre estar à frente do que era suposto, e isso fez-me chegar a lugares onde não era suposto chegar. Foi a minha história que me fez chegar onde cheguei". Mesmo assim, sentado num dos luxuosos bares do Penha Longa, vestido com uma camisa de um branco imaculado e o seu avental de serviço e tratado com reverência pelo resto da equipa que nos vai servindo, não mostra deslumbramento.

"No meio social em que cresci tinha tudo para ter dado errado, os meus amigos de infância estão nos mesmos sítios e a fazer as mesmas coisas que faziam há 12 anos e talvez agora em condições piores. Mas eu sabia sempre quando estava à beira de fazer algo mal, conhecia o limite e quando tinha de recuar." Relembra outra das figuras importantes nestas influências: a avó Isabel Lopes. Mas recusa a ideia de perfeição. "Durante a adolescência não ajudei tanto como queria e sentia-me muito impotente. Pensei que a realidade que vivíamos era normal, mas depois abri os olhos, sobretudo quando tivemos familiares a ir a nossa casa levar comida porque os dois ordenados da minha mãe não chegavam", frisa. E recorda outra contrariedade que diz tê-lo feito crescer: "Trabalhei com Eddy Melo, um dos chefs mais duros que conheci." No seu primeiro dia de estágio foi recebido aos gritos e questionado se vinha para estagiar ou para trabalhar. Caso viesse para estagiar, podia ir para casa. Foi esse impacto que despertou uma primeira vontade de seguir carreira na cozinha, mas o sonho do futebol continuava por lá. "Talvez se tivesse outra realidade social conseguisse ter ido mais longe no futebol, mas como tinha algum talento fui jogando em alguns clubes da Margem Sul, como o Paio Pires, o Arrentela e o Amora. Jogava a extremo-esquerdo ou ponta-de-lança, e os golos eram comigo", conta a sorrir.

A conversa tocou na pouca representatividade de africanos ou afrodescendentes nas cozinhas dos restaurantes de elite em Portugal. "A este nível não há", explica, acrescentando que, apesar disso, atualmente não há entraves para que isso aconteça. "É claro que às vezes existem comentários menos favoráveis quando há pessoas "diferentes" nas equipas. Mas a minha educação fez-me filtrar isso e nunca foi um obstáculo. Existirão sempre contrariedades, mas o importante é saber como lidarmos com as coisas. A minha mãe alertou-me para que isso iria acontecer e a minha avó sempre me disse para responder ignorando às provocações. Se me chamam coisas menos boas pela minha cor de pele ou por vir de onde venho, passa-me completamente ao lado. É claro que me revolta, mas é a maneira que tenho de lidar com as situações. Se tivesse outro tipo de atitude se calhar não estava onde estou."

Mesmo sem querer, dá conselhos: "A minha família veio para Portugal para procurar melhores condições de vida, mas não podemos perder o foco e temos sempre de respeitar a cultura do país. Não posso estar em Portugal e não respeitar a cultura portuguesa. Sinto-me metade português e metade cabo-verdiano. E isso é das coisas mais importantes para se ter sucesso, em que campo for." Quase sem perder o fôlego sublinha que na sua área, com um grande nível de exigência, é o trabalho e o empenho que mais contam. "Tenho mais mulheres na minha cozinha do que homens, tenho brancos e africanos, mas não tem a ver com causas, tem sim a ver com a qualidade. Num restaurante com este nível de exigência é isso que dita as regras", diz.

Por esta altura, a conversa é interrompida por um casal de portugueses que nos pede para tirar uma foto com amigos e duas peças de arte. Levanto-me, faço as honras da casa, perguntam-me se estou a fazer uma entrevista, respondo afirmativamente, mas sublinho que não percebo nada de fotografia. Insistem e apontam para as peças que têm de ser fotografadas. Feita a boa ação do dia, retomo a conversa com o chef Vladmir para se falar do futuro. Para quando a segunda estrela Michelin? O chef diz ser o próximo objetivo. "A satisfação de ganhar a primeira foi muito grande por isso estamos a trabalhar para a segunda todos os dias". E objetivos pessoais? Sorri a responder: "Para além do Lab, que é a minha casa e a minha vida agora, gostava de ter um projeto meu, aqui em Portugal e em Cabo Verde, para colocar a gastronomia cabo-verdiana a um nível superior, e gostava de continuar a formar grandes profissionais e grandes seres humanos e, muito importante, que saibam trabalhar em equipa. Se puder inspirar pessoas a serem assim quer aqui ou em Cabo Verde era ótimo". Atualmente, a mãe, Maria Alice vive na Suíça e está menos presente no dia a dia de Vladmir, mas não deixa a sua influência por mãos alheias. "Mesmo hoje se a minha mãe me disser alguma coisa, faço-o, mesmo não concordando, porque, de certeza que há um propósito no que me quer dizer". Sempre foi assim e sempre será. E os resultados estão à vista na vida do jovem Vladmir Veiga, chef, capitão de equipa do Lab, que almeja marcar muitos mais golos na Liga dos Campeões da Gastronomia.

filipe.gil@dn.pt

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt