O que nasceu primeiro? A fé, que o levou à Bíblia, ou a vontade de descobrir os alimentos e cozinhá-los à luz divina? Luís Lavrador não sabe bem responder, mas acredita que no cromossoma que fez dele um dos cinco irmãos daquela família crente, "já lá estava a fé". Não admira por isso que ali tenha nascido também o atual bispo de Angra do Heroísmo (Açores), João Lavrador..Lá em casa não o ensinaram a cozinhar, mas antes descobriu essa necessidade. "A minha mãe, além de ser uma mãe e esposa extremosa, era uma trabalhadora inveterada. Trabalhava muito no campo, a par do meu pai, por isso pouco tempo lhe sobrava para grandes petiscos", confessa o chef, enquanto faz uma revelação: "Qualquer um de nós [dos cinco irmãos] cozinha muito bem, eu até sou dos que cozinho pior.".Talvez seja modéstia para quem tem gravado no país todo um percurso enquanto cozinheiro profissional, professor e doutor, pois que o cozinheiro da seleção portuguesa de futebol fez o primeiro doutoramento em Gastronomia, defendido este ano em Coimbra..Desse tempo de menino guarda memórias de sopas, ovos mexidos e um pitéu de que lhe fica ainda o sabor: os pardais apanhados nas costelas escondidas entre o que sobrava das colheitas, na aldeia do Seixo, em Mira, onde cresceu. "Nem que fosse um pássaro, dava um banquete para todos." Os amigos da escola, os irmãos, os primos e vizinhos..Enquanto fala ao DN, Luís Lavrador desfia essas e outras memórias. Como aquela que o levou à vocação. Foi um vizinho (Gabriel da Frada) que o aconselhou a entrar na Escola de Hotelaria do Porto, na certeza de que "o futuro ia ser o turismo". Luís sabe agora que o amigo "era um visionário", olhando à distância de 40 anos e do rapaz que era, então, o primeiro do curso de Cozinheiro, numa escola que à época só formava diretores de hotel (gestão hoteleira). Tinha o destino traçado, já se vê, nesse condão de ser o primeiro a experimentar coisas novas, como haveria de lhe acontecer outras vezes, até ao doutoramento..Da cozinha ao doutoramento.A certa altura da vida, Luís Lavrador sentiu necessidade de aprofundar conhecimento, de concretizar em formação o que já sabia. "Faltava-me qualquer coisa. Era solicitado para participar em congressos e conferências, por vezes começava a claudicar, principalmente na parte teórica. Ou então qualquer dia só saberia falar de cebolas estufadas, alhos ou tomates. Percebi que era importante saber pelo menos onde é que os alimentos começaram a ser consumidos, e o que tinham representado, e para quem", diz..Foi assim que pensou no curso de Sociologia. Matriculou-se na Universidade de Coimbra, mas de permeio a faculdade cria um mestrado em Alimentação, que o cativou. É aí que há de nascer a tese sobre "fontes, cultura e sociedade", que depois resultará no doutoramento e no livro que agora chegou às bancas. Como fonte principal, Luís escolheu logo nesse momento a Bíblia. Porque a conhecia bem? Nem por isso. "Nunca a tinha lido", confessa o chef, então aconselhado pela professora Maria Helena Coelho, responsável pela cadeira de "ritos e interditos" e o incumbira de fazer um trabalho para a disciplina. Estava dado o primeiro passo para o grande desafio do chef.."Ao abrir a Bíblia calhou-me o Livro do Levítico, onde os interditos alimentares do judaísmo estão todos presentes. A partir daí tinha uma parte do trabalho feito", recorda Luís Lavrador, que logo o intitulou Ao Sabor da Bíblia, num levantamento exaustivo de tudo o que era matéria alimentar, do que representavam os alimentos para o judaísmo e o que passaram a representar para o cristianismo..A tese foi arguida pelo professor José Ramos, um dos maiores especialistas portugueses em Bíblia. Choveram elogios, Luís Lavrador degustou-os como o reconhecimento de "uma área secundada, por vezes até menosprezada como é a profissão de cozinheiro". Quis trazê-la para um curso superior e isso "foi uma grande vitória. Todas as outras universidades querem agora ter o curso também"..O título publicado pela Alêtheia Editores é um livro de receitas, a par de história e de antropologia. Ao sabor da Bíblia revive alguns dos banquetes, ceias e bodas retirados dos principais relatos escritos da história humana. Nesta edição, o autor sugere um conjunto de ementas inspiradas nas mais importantes refeições bíblicas, com propostas para o Natal, para a Páscoa, para um banquete ou mesmo para um dia de lazer.