O chamariz dos call centers

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Os italianos são um povo de emigrantes, cujas migrações raramente tiveram Portugal como destino. Não falo de Cristóvão Colombo, nem dos sicilianos que durante séculos se dedicaram à pesca do atum no Algarve. Nas últimas décadas, para quem pertence à chamada geração Erasmus (programa que neste ano completa 30 primaveras), era mais provável vir para Portugal à procura de matérias (e bolsas) de estudo. Eram jovens arquitetos encantados com a Escola do Porto ou estudantes de Letras à procura de poetas inéditos. Já Antonio Tabucchi costumava contar o seu coup de foudre: em França, num bouquiniste qualquer, descobrira um livrinho chamado Bureau de Tabac, tradução de Tabacaria, e não teve outro remédio senão aprender a língua original desse tal Álvaro de Campos.

De há uns anos a esta parte, porém, parece que Portugal se tornou também destino da emigração mais banalmente impulsionada pela eterna procura de trabalho. A atrair jovens, e não só, são os call centers, um setor que cresceu com a crise. As entrevistas são feitas por Skype. Passados os vários níveis de seleção, pede-se ao candidato para fazer as malas e comprar um bilhete só de ida.

Às vezes nem é preciso ir buscá-los ao país de origem, porque os mesmos que vieram cá estudar - quando as bolsas acabam e as universidades, como se viu nas notícias mais recentes, convidam os melhores para darem aulas... grátis - batem à porta das multinacionais. O meu amigo Antonio Cardiello, por exemplo, é doutor em Filosofia e coeditor da obra completa de Álvaro de Campos, entre outras publicações pessoanas em Portugal, Itália, Espanha e América Latina. Um currículo que, no passado ano letivo, o levou a lecionar num curso da Faculdade de Letras de Lisboa. De borla. O salário verdadeiro e regular veio do call center e se calhar alguns de vocês já falaram com ele, nesse sábado à noite tramado em que, ao sexto mojito, perderam o cartão de crédito na discoteca.

E, porque o mundo dos call centers é uma janela com vista para as desigualdades europeias atuais, diga-se que os salários variam conforme o tratamento laboral que o país de origem pode garantir aos seus trabalhadores. Um alemão ganhará mais do que um italiano, que por sua vez ganhará mais do que um português. A raridade da língua falada também conta, por isso portugueses e brasileiros, em Portugal, ganham menos; estão inflacionados e valem menos do que um escandinavo.

Contudo, o ordenado está bastante acima do mínimo nacional e isto, claro, é o maior atrativo, para além da possibilidade de ir morar num quarto dos vários apartamentos que as multinacionais adquiriram mesmo para abater custos. Assim, partilhando a sala de estar e a saladeira, o fogão e o frigorífico, os call centers revelam-se a continuação do Erasmus por outros meios. Vida de estudante toda a vida. Só alguns conseguem sair e correr atrás das paixões. Como Luca Onesti, que, depois da experiência no outbound (são os que telefonam a toda a hora, perguntam com vozinha tímida se nos podem fazer umas perguntas e levam com cada palavrão do interlocutor atarefado), regressou ao amor insensato pelo jornalismo (em Itália publicou C"Era Una Volta in Portogallo, livro-reportagem sobre a Volta a Portugal). Ou Valerio Giovannini, que bateu com a porta de uma famosa companhia aérea e, com uma amiga alemã, Milena Kalte, fundou a Base dos Engenheiros do Acaso, ateliê de pintura e joalharia entre São Bento e o Príncipe Real.

A utopia é a mesma de sempre: libertar-se através do trabalho ou ver-se livre dele, se possível sem passar fome. Até lá, uma passagem periódica pelos telefones, para abastecer discretamente a conta bancária, poderá revelar-se inevitável. E é nesses momentos fatais que os cérebros em fuga de toda a Europa, cada um na sua língua materna ou no original português, recordam os versos imortais de Tabacaria, que parece escrita hoje para eles:

Serei sempre o que não nasceu para isso;

Serei sempre só o que tinha qualidades;

Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta.

Jornalista freelance, colaborador da QCodeMag

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