O cerco ao Qatar
Sem aviso prévio, o Qatar foi alvo de bullying por parte de alguns dos seus vizinhos do Golfo e, ainda, do Egito. Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos e Bahrein cortaram relações diplomáticas e bloquearam os acessos aéreos, terrestres e marítimos ao pequeno emirato. Num abrir e fechar de olhos, o abastecimento de bens ficou vedado e Doha deixou de funcionar como uma das grandes plataformas de circulação de pessoas entre geografias várias. Convém lembrar que 40% dos alimentos no Qatar são comprados à Arábia Saudita. A versão imediatamente posta a circular por Riade justificava a decisão com a acusação de o Qatar ser o grande patrocinador de terrorismo da região, fazendo crer que não tem nada a ver com o assunto. Se a política internacional é um permanente jogo de cinismos, a que se faz no Médio Oriente acrescenta-lhe um enigmático cruzamento de sombras. Há, como é evidente, muito mais do que a tese saudita para explicar o que sucedeu.
A questão do Qatar não é recente. Dentro do Conselho de Cooperação do Golfo (CCG), os sauditas gostam de pensar que mandam e que os outros obedecem. No fundo, que esse fórum de seis monarquias funciona como cinco mais uma. Além disto, esperam que não haja qualquer folga autonómica perante aquilo que Riade considera serem as linhas vermelhas do clube. A maior delas é a equidistância com o Irão que resvale para um alinhamento estratégico. Esta é a razão principal para o bloqueio ao Qatar: a relação privilegiada entre Doha e Teerão numa altura de profunda divisão entre sunitas e xiitas na região, e entre a Arábia Saudita e o Irão na liderança desse projeto de hegemonia. Importa dizer que há uma nota de pragmatismo a ditar a relação entre o Irão e o Qatar, dado que a maior jazida de gás natural do mundo se encontra entre os dois territórios e a sua exploração é vital às duas economias.
Além disto, Doha tem a ambição, não consentida por Riade, de valer mais no xadrez internacional do que a sua dimensão territorial. Por exemplo, tem assumido um papel de intermediação negocial em vários conflitos (Afeganistão, Gaza, Sudão e Iémen), o que destrói por completo a ambição saudita de pautar a seu bel-prazer os termos com que se devem comportar os países sunitas, isto é, numa mera lógica de "nós" contra os "outros" até à vitória final. A diabolização do Irão - acicatada pela assinatura do acordo sobre o nuclear e pela perspetiva de que o alívio das sanções impulsione a ambição imperial persa - não tem dado margem para qualquer contemplação com quem não está de corpo e alma com a Casa Saud. A visita de Trump a Riade só legitimou a linha dura regional saudita.
O segundo nível de explicação está, como em quase tudo no Médio Oriente, no caminho percorrido por essa alma exacerbada. Para Riade, não há espaço para dois baluartes wahabitas na orientação maior e purista do sunismo, nem o estatuto de Meca ou Medina pode alguma vez ter concorrência espiritual vinda da Grande Mesquita do Qatar dedicada a Ibn Abd al-Wahhab, o fundador do wahabismo. A verdade é que a versão "progressista" que o Qatar mostra ao mundo é concorrencial com o conservadorismo saudita e geradora de muito menor condenação internacional: se Doha é uma capital global, Riade continua com um carimbo medieval. O bloqueio ao Qatar serve também para mostrar que a lei do mais forte estende-se à preservação de um espaço emérito da casa real saudita na influência exclusiva e direta sobre a comunidade sunita global.
Por fim, os equilíbrios regionais. A soltura do Qatar vem desde a ascensão da Irmandade Muçulmana (IM) no Egito e reforçou-se com a chegada ao poder de Mohamed Morsi, dependente da ajuda imediata de Doha para conter a hecatombe financeira pós-revolução. Do lado oposto da disputa pelo Cairo, a Arábia Saudita, o Koweit e os EAU disponibilizaram 12 mil milhões de dólares ao "novo" regime do general Sisi, oito vezes mais do que os EUA dão anualmente ao Egito em ajuda militar, confirmando uma aliança com o Egito para conter as ambições nucleares do Irão e esvaziar a influência do Qatar em vários tabuleiros, seja pela via financeira ou pela difusão noticiosa da amaldiçoada Al Jazeera. Aliás, a disputa pela prevalência entre oposições na guerra da Síria foi também pautando a crispação entre Doha e Riade.
E é por estes quadros paralelos acrescentarem decibéis a essa tensão que a Turquia e o Irão saíram em auxílio do Qatar nos últimos dias. Erdogan, ao proteger militarmente um país que disputa a liderança dos sauditas no universo sunita, alargou o seu aparato a um território já com bases americana e francesa. Além disso, em poucos dias, Ancara abriu uma ponte aérea onde mais de 70 aviões levaram cinco mil toneladas de alimentos ao Qatar. Já o Irão garantiu que os cortes ao abastecimento comercial e energético seriam minimizados, mostrando à região e a Riade o seu papel decisivo, influente e magnânimo. No meio disto, Washington. Fortalecer Riade no Médio Oriente e apontar o dedo ao Qatar não inibiu a administração Trump de fechar um acordo com Doha para a venda de vários F-15 no valor de 12 mil milhões de dólares, mostrando que a estratégia da administração é meramente transacionável e de retorno rápido para uma indústria que gera empregos em Estados cruciais para o presidente americano. Certo, também aqui não há grande novidade. A conclusão é que os EUA não têm interesse em revolucionar o Médio Oriente (como desastradamente fez George W. Bush) ou equilibrar de facto as tentativas de hegemonia regional entre Riade e Teerão (como tentou Obama). Trump escolheu um lado e diabolizou o outro, o que, ao contrário do que pensa, não lhe dá força maior, faz é da América um grande agente desestabilizador numa região sentada num barril de pólvora, tornando-a ainda mais insegura e instável. O Qatar foi o último exemplo disso.