O centenário da I Travessia Aérea do Atlântico Sul: um Estado distraído

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Em 2017, o Presidente da República, numa cerimónia em Belém de celebração da aviação naval portuguesa, anunciava que em 2022 Portugal e o Brasil iriam celebrar o centenário da primeira travessia aérea do Atlântico Sul. A cerimónia decorreu em frente ao monumento inaugurado em 1991, e cuja réplica do "Santa Cruz" (neste momento a única aeronave deste tipo no mundo), simbolizava aquele que foi porventura o mais significativo feito dos portugueses do século XX, de acordo com a opinião de Miguel Mota, então presidente da Assembleia Geral do Aero Club de Portugal e um dos promotores do monumento, e que escreveu ao longo de várias décadas sobre esta questão. Uma das críticas que fez em 1998, e pleno de razão, foi a total ausência do tema na Expo 98, dedicada ao tema "Oceanos".

O Comandante Cyrne de Castro, hoje com cerca de 90 anos, membro da Academia de Marinha, e um antigo aviador naval nos anos 50, declarava no mesmo local e dia: "Este centenário merece que nos empenhemos numa melhor consciencialização do significado daquele feito aeronáutico e do que ele contribuiu para o prestígio de Portugal e para o desenvolvimento da segurança na navegação aérea em todo o mundo". E acrescentou "Dentro de cinco anos é daqui a pouco tempo". Eis-nos chegados, cinco anos depois.

Quem segue com atenção a comunicação social, nos jornais , rádio ou TV, facilmente se apercebe, e salvo raras excepções, que não se vislumbram praticamente notícias nenhumas sobre a importante efeméride que se aproxima. No que é conhecido pela "sociedade civil" existem de há uns anos para cá, algumas iniciativas e boas intenções, como é o caso do grupo "Lusitania100". Trata-se de um site interessante e informativo, mas sem indicações precisas sobre as actividades a desenvolver este ano. Creio, p.ex., que se desistiu de construir uma réplica do "Lusitânia", o que é uma pena.

Honra seja feita à RTP que transmitiu recentemente um excelente "Visita Guiada" sobre o tema, em colaboração com o Museu de Marinha. Parabéns, Paula Moura Pinheiro. A National Geographic - Portugal acaba de publicar no seu número de Janeiro, com honras de capa, um excelente artigo de fundo ("Centenário de uma saga da aviação naval") sobre este acontecimento. Estão também de parabéns.

De acordo com o Diário da República (Portaria nº284/ 2021, das Finanças), está prevista a emissão pela INCM de uma moeda comemorativa de 2 euros, mas aí vemos que apenas contém uma imagem do avião (Lusitânia ou Santa Cruz?), sem referência aos nomes dos aviadores; como se a aeronave voasse sem pilotos.

Em Abril de 2021 a UNESCO decidiu associar-se ao evento, tendo o embaixador Sampaio da Nóvoa referido grande abertura por parte dos outros países, nomeadamente Angola, Moçambique, Cabo Verde, Brasil e Espanha, mas igualmente desconhece-se o programa de actividades. Cabo Verde parece ser o país lusófono mais activo neste momento, mas seria da maior importância o Brasil associar-se, tanto mais que é também o ano do bicentenário da Independência. Em 1922, e nos vários portos de chegada (Recife, Salvador, Vitória e Rio de Janeiro) os aviadores foram recebidos apoteóticamente, como se pode ver nas filmagens. E Gago Coutinho levou consigo e ofereceu ao Real Gabinete Português de Leitura, na presença do presidente brasileiro Epitácio Pessoa, um raro exemplar, edição do século XVII, de Os Lusíadas.

Mas a maior responsabilidade da celebração cabe ao Estado português, nomeadamente através dos Ministérios da Defesa (Marinha e Força Aérea), da Ciência (atendendo à importante componente científica de navegação astronómica, pioneira a nível mundial), da Educação (divulgação) e dos Negócios Estrangeiros (tendo em conta os países por onde os aviadores passaram, Cabo Verde, Espanha/ Canárias e Brasil). E sob o alto patrocínio da Presidência da República. Estamos a menos de 2 meses da data da partida do voo (30 de Março) e ... nada. Dirão que estamos em período eleitoral, mas isso seria um indesculpável motivo, quando neste mesmo período se destacam tantas efemérides e eventos de importância e alcance muito inferiores.

O voo de Gago Coutinho e Sacadura Cabral, para além de constituir a I Travessia Aérea do Atlântico Sul, foi o primeiro voo a nível mundial a ser efectuado de forma científica, matemática com cálculos rigorosos, utilizando um sextante especialmente adaptado por Gago Coutinho, com horizonte artificial, e um "corrector de rumos", para se poder fazer a correcção da trajectória. Nesse aspecto um voo bem mais importante que os dois voos efectuados uns anos antes de travessia do Atlântico Norte. Foi aliás a primeira vez que se utilizou um sextante em navegação aérea. Isto permitiu que a etapa maior do voo, entre Cabo Verde e o Brasil, se realizasse com sucesso, chegando a aeronave com precisão, e no limite do combustível, aos minúsculos Penedos de S. Pedro e S. Paulo, junto à costa brasileira. É verdade que foram necessárias várias etapas pois as aeronaves de então (1922) não tinham autonomia para o voo directo Lisboa-Rio de Janeiro, e é verdade também que foram necessários 3 aviões Fairey por causa de dois acidentes inesperados, mas isto em nada retira valor ao feito.

Ainda estamos a tempo de efectuar uma celebração condigna ao longo deste ano, mas para isso é necessário que as diferentes instituições estatais (para além de outras iniciativas de carácter privado) se mobilizem. É urgente começar a passar a notícia nas TVs, jornais, rádios, nas escolas, etc... Como Miguel Mota refere em 1996, seria igualmente apropriado (e mesmo urgente) a realização de um filme sobre este acontecimento. Gago Coutinho e Sacadura Cabral, assim como Portugal, merecem isso.

Professor universitário, Évora

O autor não adopta a ortografia resultante do mais recente acordo ortográfico

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