O cavalo de troia que leva quimioterapia por controlo remoto

Em Coimbra, estuda-se abordagem pioneira de transporte e fotoativação de quimioterapia, que pode revolucionar o combate a casos de leucemia
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"Toda a gente conhece a história do cavalo de Troia. Aqui, acabam por ser dois num só sistema: uma nanopartícula, que esconde o agente quimioterapêutico dentro, e a própria célula funciona como um cavalo de Troia, porque transporta a nanopartícula sem saber que a tem lá (ou o que ela tem)." O assunto não é uma lenda da antiguidade clássica mas, sim, o combate ao cancro, com uma tecnologia pioneira desenvolvida no Centro de Neurociências e Biologia Celular (CNC) da Universidade de Coimbra. A descrição de Ricardo Neves é de um novo método de transporte de quimioterapia, por controlo remoto, que pode revolucionar o combate a casos de leucemia.

Em causa, está o projeto de uma equipa internacional de investigadores, para o desenvolvimento de nanopartículas capazes de levar quimioterapia, de forma "encapotada", até ao nicho leucémico onde se produzem as células estaminais cancerígenas. O objetivo é que o "medicamento" apenas seja libertado à chegada a esse local da medula óssea, por fotoativação a partir de luz, para fintar a resistência do organismo a tratamentos do género. E a investigação, liderada por Ricardo Neves e Lino Ferreira, do CNC, está bem encaminhada. Entre as vantagens desta abordagem, está a possibilidade de o doente receber um tratamento mais localizado, com maior possibilidade de sucesso e diminuição dos efeitos secundários habitualmente associados à quimioterapia.

"Este projeto iniciou-se há seis anos, quando fomos financiados pela Fundação para a Ciência e Tecnologia, para criar uma nanopartícula", recorda Ricardo Neves, antes de esmiuçar os pormenores do trabalho desenvolvido no Centro de Neurociências e Biologia Celular da Universidade de Coimbra - quando o DN foi conhecer a investigação, às instalações do Parque Tecnológico de Cantanhede, Lino Ferreira encontrava-se ausente, na Finlândia. Ora, uma nanopartícula é "uma entidade muito pequena, de tamanho entre 10 e 200 nanómetros [milionésimo de milímetros], que pode ser de origem biológica ou sintética".

"A nanopartícula em questão no projeto, desenvolvida em laboratório, é um copolímero, que funciona como uma sanduíche: segura dentro dos seus dois componentes uma molécula. As nanopartículas são utilizadas na terapia de cancro para encapsular (segurar) moléculas de quimioterapia e assim aumentar a sua estabilidade no organismo, direcionando-as para os locais onde devem ir e diminuindo efeitos secundários noutras zonas. Esta é especial porque tem uma componente que é fotossensível e que permite que nós, por ação da luz, consigamos desfazê-la e libertar o que ela tem capturado [o agente terapêutico]", descreve o investigador do CNC.

Esse processo não é fácil. E é aqui que começa a funcionar a analogia do cavalo de Troia (o gigante equídeo de madeira, que, segundo a lenda, foi usada pelos gregos para entrarem, de forma dissimulada, na cidade fortificada de Troia, que acabariam por conquistar). "É difícil levar o agente terapêutico para o sítio específico em que queremos que ela atue. A fórmula que arranjámos foi usar as próprias células da leucemia (que perpetuam a doença e vivem alojadas no chamado nicho leucémico do paciente) como transporte da nanopartícula que contém a quimioterapia. As células não sabem que estão a transportar esta nanopartícula porque ela escapa aos sistemas que as células têm de efluxo [deteção e expulsão] da droga. Acabam por ser quase dois cavalos de Troia num só sistema, porque a nanopartícula esconde o agente quimioterapêutico dentro dela, e a própria célula transporta a nanopartícula sem saber que está a levá-la para o sítio", esclarece Ricardo Neves.

Quais os próximos passos?

A partir de 2012, o financiamento europeu recebido pelo projeto Nano Trigger - de desenvolvimento de nanopartículas fotoativáveis, iniciado por Lino Ferreira - serviu de catalisador para a investigação. E é ainda nesse campo que está um dos seus desafios atuais. "O Nano Trigger era com fotoativação na gama de azul. Para aplicação em contexto humano, temos de usar com fotoativação na gama de infravermelho. São essas plataformas que estamos a desenvolver. Neste momento já temos algumas nanoformulações que permitem fazer a entrega e estamos a testar o potencial para libertarem uma droga já usada em clínica. Depois, eventualmente, poderemos testar drogas novas", elucida o investigador.

Depois, há outros passos para dar - "com uma série de barreiras regulamentares a respeitar". Um dos prioritários "é testar se podemos fazer a entrega usando células estaminais normais da medula óssea em vez de células leucémicas, porque estamos a pegar nas células que provocam a doença e a reintroduzi-las dentro do organismo, o que pode ter algum efeito secundário com que a gente não está a contar....", explica o biólogo. Esse é um grande desafio porque, habitualmente, as células cancerígenas conseguem expulsar as células normais da medula óssea. "O que nós queremos fazer agora é o contrário: pegar nas células normais e carregá-las com o agente quimioterapêutico (que elas não sabem que estão a transportar), que se espalha depois através de fotoativação", aponta.

Dez anos até chegar ao paciente

Assim, ainda faltam alguns anos até que os primeiros doentes possam beneficiar deste inovador método de transporte de quimioterapia. "Prevemos que no prazo de dois anos teremos as novas formulações de partículas capazes de ser ativadas por infravermelhos. A etapa seguinte passará por fazer ensaios clínicos, que dependerão muito do que se conseguir em termos de financiamento. Mas é sempre coisa para demorar quase uma década até estar no paciente", reconhece o investigador.

No entanto, os sinais até aqui são positivos. "A caminhada está bem lançada, porque os conceitos são inovadores. E isso é reconhecido pelas publicações e pelas patentes: nós não conseguiríamos publicar nem patentear as tecnologias, se elas não fossem passos em frente. Mas, claro, sendo isto para aplicação no contexto da medicina humana, demora sempre muito tempo; há que dar uma série de passos de controlo da qualidade até estar disponível nas farmácias hospitalares", assume Ricardo Neves.

Pequenas vitórias que dão ânimo

A demora, a incerteza e a dificuldade em garantir financiamento são das maiores angústias de quem trabalha em investigação científica. "Esta é uma vida altamente frustrante, em que é preciso ser um bocado masoquista, não só porque descobrir coisas não é fácil - exige muito trabalho e dedicação, muito estudo, muita leitura... e bater muitas vezes com a cabeça na parede, até se encontrar um caminho - mas também porque fazer isto num contexto de crise financeira é uma desgraça. Uma coisa é fazermos isto e termos várias cordas de segurança, outra é darmos estes saltos sem rede, sabendo "tenho dinheiro para fazer estas duas ou três tentativas e depois não há mais"", desabafa o investigador. "Inicialmente o projeto da FCT permitiu arrancar e fazer as primeiras coisas mas chegámos a um momento em que dissemos "bem, temos de ir buscar mais financiamento porque senão não vamos conseguir dar o próximo salto". Graças a muito trabalho, o Lino conseguiu - com a nossa ajuda - esse financiamento europeu e a partir daí as coisas foram mais fáceis, até para convencer os nossos parceiros, porque certamente só a amizade que eu trazia de Oxford [um dos centros de investigação parceiros do projeto] não seria suficiente para os convencer a gastar alguns milhares de libras a fazerem experiências", sublinha.

Até aqui, as dificuldades foram todas ultrapassadas. "As pequenas vitórias que vamos tendo - os avanços do dia-a-dia, as garantias de financiamento, os alunos de doutoramento formados ("um deles já se doutorou, o outro vai fazê--lo até final do ano") - dão ânimo para ir com as coisas para a frente." E é esse o caminho que se tem de seguir se se quer levar o transporte de quimioterapia a bom porto.

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