O "cavallo automato"

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Os praticantes, devotos e apóstolos das teorias da conspiração terão por certo muito que se entreter com a notícia de que entre uma data incerta em 2020 e 24 de Agosto de 2022, dia em que se celebra a memória de São Bartolomeu, Apóstolo, o ex-ministro e ex-secretário de Estado João Galamba foi detectado pelas autoridades no telefone e na internet 82 676 vezes. Fazendo as contas, nos aproximadamente 900 dias em que a moderna tecnologia permitiu às zelosas autoridades estar à coca sempre que o então governante ligava o telemóvel, o computador ou o tablet, João Galamba conectou-se com o universo 92 vezes por dia. Parece muito, mas esmiuçando melhor, e admitindo que Galamba apenas dorme seis horas por dia, terá estado ao telefone ou no WhatsApp cinco vezes todas as horas, dias santos, feriados civis, fins-de-semana e folgas incluídos.

Continua a ser muito, embora um olhar mais atento para as atitudes dos portugueses, seja no seu ambiente natural e até no laboral, não estabeleça um desvio padrão nessa compulsão pelo telemóvel. Basta ver o que se passa numa carruagem de metro, numa esplanada, numa rua muito frequentada, numa passadeira para peões, e até para os condutores, para perceber que se está sempre no telemóvel. Se a tratar de negócios, do lítio ou do jantar, é uma dúvida que só a Procuradoria-Geral da República poderá esclarecer, caso estejam a escutar - como parece ser seu dever - os 12,8 milhões de telemóveis que segundo os dados mais recentes da Anacom estão activos em Portugal. (Entre telemóveis, computadores e tablets o número de acessos licenciados é de 19 milhões). Como curiosidade acrescida, a Anacom informa que o tempo médio de cada chamada foi de 3 minutos e 1 segundo. A cinco chamadas por hora, João Galamba terá passado quase cinco horas por dia ao telemóvel.

É esta loquacidade, que aliás o ex-governante nunca escondeu dos portugueses, que estabelece o paralelo com São Bartolomeu Apóstolo, patrono dos sapateiros, companheiro de Jesus e divulgador imparável da sua mensagem, esfolado vivo por, dizem os apologéticos, não conseguir estar calado. Mesmo sem escutas telefónicas e usando apenas os meios rudimentares da época com que a natureza os tinha dotado, as orelhas, os sicários do Rei Astyages da Arménia reuniram provas suficientes para condenar o pobre Bartolomeu a ser afogado, crucificado de pernas para o ar ou, na versão mais consensual, esfolado vivo e posteriormente decapitado.

Das 82 676 vezes que João Galamba foi detectado no WhatsApp ou escutado, no entanto, menos de dez terão servido para qualquer coisa que justificasse inclusão incriminatória no processo e que levou à sua demissão. Valeu a pena tanto esforço, tanta tecnologia, para tão mísero desenlace, é uma questão que diz muito sobre a capacidade de os portugueses obterem resultados e melhorarem a sua produtividade, mesmo quando dotados de dispendiosos meios do mais avançado que há.

Portugal equipou-se, modernizou-se, tornou-se digital, e o resultado - como sabe qualquer cidadão que precise de renovar um documento, obter uma licença, ou resolver um problema com a Administração Pública - é que os serviços e o atendimento continuam morosos, incapazes de resolver em tempo, e tão insatisfatórios como sempre. Apesar de tanto computador e tanto Portugal Digital, foi preciso que a então ministra Alexandra Leitão entrasse aos berros numa Loja do Cidadão para que pessoas há onze horas à espera fossem atendidas. A ministra da Modernização Administrativa teve de usar o velho e pouco tecnológico método do berro para desemperrar a máquina. Se ficou - e continua - mais moderna, há dúvidas.

Este mito da modernização e novas tecnologias é antigo e enraizado, como é patente numa notícia publicada na primeira página do primeiro número deste jornal. Escrevia um articulista anónimo, imagino que o fundador e "redactor" Eduardo Coelho logo no dia 29 de Dezembro de 1864 que o que o jornalismo português necessitava era de modernização. Máquinas (além, possivelmente, dum acordo ortográfico). Havia lá fora, dizia, "uma maravilha da industria humana n"este momento em poder do rei de Wurtemberg. É um cavallo automato que executa todos os movimentos que podem exigir-se a um cavallo verdadeiro. Montam-no, governam-no, e presta-se a todas as phantasias da equitação. Esta preciosidade só funcciona diante de pessoas de grande intimidade do rei. Era de um bicho d"estes que precisava cada colaborador d"esta folha para fazer as suas excursões diarias."

Presume-se que a Procuradoria-Geral da República e os investigadores do Ministério Público tenham todos os bichos do mais moderno que há à sua disposição, mas também não era preciso. João Galamba esfolou-se vivo a si próprio vivo, no que teve a prestação metafórica e política do Presidente da República, outro dotado de uma irrepreensível loquacidade e que, se não esfolado, pelo menos já se arranhou por não saber estar calado.

Como há dois mil anos São Bartolomeu, não foram necessários "cavallos automatos" ou outros bichos de ponta para se esfolarem. Estivessem calados.

Diretor do Diário de Notícias

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