O carro partido a Veiga Trigo, a caneleira que fez fugir Rola e o amigo polícia de Rosa Santos

Três antigos profissionais do apito explicaram ao DN como era ser árbitro nos anos 1980-90. Cada ida a um estádio era uma aventura e muitas delas ficaram na história por maus motivos. Admitem ter cometido erros, mas recusam ser réus únicos no futebol. E temem que as ameaças continuem a aumentar...
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"Com o Veiga Trigo ninguém faz farinha." A frase, sem origem conhecida, pegou de tal forma que o antigo árbitro de Beja ainda a usa para explicar a fama de rijo que ganhou a apitar (1979/96). "Eles já sabiam que quando me dirigia ao banco era para expulsar alguém, não era para fazer avisos como hoje se vê. Eles é que tinham de se explicar depois, a palavra do árbitro era valorizada, era lei. Os jogadores estavam ali para jogar e eu para apitar. Eu também não criticava um jogador por cometer um penálti ou falhar um golo de baliza aberta. Se cometi erros? Sim, claro, quem não cometeu?"

A interrogação em jeito de resposta do antigo juiz está mais atual do que nunca. A arbitragem (e os erros) está na ordem do dia, há meses, e já se fala num possível boicote à Liga 2017-18 se os casos de ameaças e agressões continuarem a subir. Mas será este o pior momento que a classe do apito atravessa? Veiga Trigo, António Rola e Rosa Santos lembram como era no tempo deles, "sem comparar o incomparável".

"Eu ainda sou do tempo em que se recebia a nomeação por carta. Havia uma comissão central de árbitros na Federação e todas as semanas esperava pelo correio para saber que jogo ia apitar. Recebíamos uma carta com um postal e outra dentro. Tínhamos de assinar o postal e mandar de volta para confirmar que tínhamos recebido a nomeação, que só podíamos abrir na sexta-feira às 15.00", contou Veiga Trigo ao DN, recordando que, se a comissão "desconfiasse" que abriam o envelope mais cedo, telefonavam a retirar o árbitro do jogo e a avisar que seria alvo de um processo disciplinar.

" Chamarem-nos filhos de isto e daquilo? Isso era normal. Não devia, mas era normal e habitual. Todas as semanas vemos dirigentes a colocar em causa o bom nome do árbitro, é o pão nosso de cada dia. Antes, também o faziam, mas nada como agora. Se fosse no campo eu tinha coragem para os expulsar e estava feita a justiça. Hoje as coisas arrastam-se meses e isso interessa a quem?", questiona Veiga Trigo, já com uma explicação na ponta da língua: "Os clubes fazem grandes investimentos sem a certeza de os rentabilizar e é mais fácil culpar as arbitragens."

E sentia-se seguro? Os árbitros, na altura, tinham segurança? "Qual quê... Nós chegávamos anónimos e se o jogo corresse bem partíamos anónimos, se corresse mal tínhamos de recorrer às forças policiais", respondeu, antes de confirmar que teve uma meia dúzia de situações: "O episódio mais grave que tive foi em Braga, num Sp. Braga-Vit. Setúbal (1989). Partiram-me o carro todo e choveram pedras para dentro do campo... o jogo não chegou ao fim."

Foi instaurado um processo, que culminou com uma derrota administrativa (3-0) para os arsenalistas. Além disso, o Municipal de Braga foi interditado por seis jogos e o clube obrigado a jogar a mais de 300 quilómetros. "Ainda fiz queixa contra terceiros mas não deu em nada, mas o clube teve de me indemnizar no valor da reparação do veículo", contou o alentejano, sem memória de ter tido casos nos tribunais civis.

Naquele tempo diziam que o Benfica não perdia em casa com Veiga Trigo. "Não é verdade, perdeu uma vez em casa emprestada, nas Antas, com o Vit. Setúbal, em 1987 (1-0)", respondeu de pronto, recordando que nessa altura "não convinha" pôr na ficha o nome do clube com que se simpatizava: "Eu nunca disse, mas gosto do verde..."

Veiga Trigo garantiu nunca ter sido abordado para favorecer este ou aquele. Nem recebeu ofertas. "Não. Nunca me tentaram aliciar. No meu tempo houve dois casos penalizados. O caso Guímaro e o de Francisco Silva", recordou. O primeiro foi acusado de receber um cheque de dois mil contos (dez mil euros) do Penafiel e irradiado pela justiça desportiva, mas ilibado pela civil. Já Guímaro foi condenado em tribunal por corrupção - terá recebido 500 contos (2500 euros) do Leça -, mas o Supremo anulou parcialmente a sentença.

Estes dois casos marcaram a arbitragem e "por uns pagaram os outros", segundo Veiga Trigo, que não acredita em árbitros coagidos ou vendidos atualmente: "Eles não se vão sujeitar a tentativas de suborno, nem nada disso, porque já ganham muito dinheiro. Até para treinar são pagos. Eu comecei por receber 15 mil escudos (75 euros) por jogo, mais ajudas de custo. Até 200 km era de uma forma, dos 200 aos 400 era outra e dos 400 para cima outra, mas tínhamos de pagar gasolina, hotel e refeições e por vezes não sobrava nada."

O processo de Rola a Pimenta Machado

António Rola fez parte do "parente pobre do futebol". Era assim que apelidavam a arbitragem nos anos 1990, "uma classe sem condições para treinar, sem preparadores físicos ou psicólogos à disposição". A primeira coisa que fazia após saber que jogo lhe calhava era ligar para os fiscais de linha e traçar um plano. Até a viagem era preparada de forma a fazer paragens e comer tranquilamente, de maneira a chegar ao estádio uma hora e meia antes.

Depois, com o aparecimento da Liga, em 1994, começou a haver outras condições e começaram a ir de véspera e a ficar em hotéis. "Hoje, o árbitro é um privilegiado. Treina durante a semana, é acompanhado por profissionais, vão buscá-lo a casa, fica em bons hotéis e têm a figura do 4.º árbitro para o auxiliar fora das quatro linhas. Eu tinha de me preocupar com o que se passava dentro e fora de campo e o erro do fiscal de linha penalizava a minha nota. Hoje cada um trabalha para uma classificação independente", explicou Rola, reconhecendo que "hoje há mais exigência, há mais câmaras a filmar."

Mas a mesma garantia de então: "Não há jogos sem árbitros." Uma verdade de La Palisse, tal como o conflito e a pressão inerente à profissão. "A polícia esperava à entrada da vila ou cidade e acompanhava-nos até ao estádio. E ia um polícia à paisana no nosso carro", contou o atual comentador de arbitragem da TVI e da BTV, explicando que "sempre houve preocupação com a segurança mas nada como agora".

Temeu pela vida alguma vez? "Não, mas tive alguns jogos complicados. Uma vez, em Chaves, estava o Boavista a ganhar por 1-0, um golo do baixinho Marlon de cabeça, numa jogada normalíssima e sem polémica. Depois, já perto do fim do jogo, um jogador do Chaves tirou as caneleiras, um dos fiscais avisou-me e eu mostrei-lhe o cartão amarelo... De repente, os adeptos rebentaram com a vedação e perseguiram-nos. Ninguém foi agredido, mas tivemos de fugir e refugiarmo-nos nos balneários."

Outra história aconteceu num Feirense-Amora. "Cheguei e não havia vivalma no recinto. Assim que abriram o portão, quatro ou cinco indivíduos bem constituídos fisicamente levantaram--me o carro, levaram-me uns bons 60 metros em duas rodas e disseram-me: "Isto é um aviso, se te portares bem..." Eu respondi: "Se ficar em Vila da Feira fico, mas eu vim com uma missão, que é fazer cumprir as leis do jogo." E assim foi, correu tudo bem."

Quanto às ofensas, ouviu-as, mas nem todas ficaram guardadas nos relatórios, apesar de ter chegado a processar um dirigente. "Num dérbi minhoto, decisivo para a Europa, da última jornada de 1996-97, Pimenta Machado teve uma atitude inconveniente comigo e o assunto passou para os tribunais. Além dos 180 dias de castigo e 600 contos (três mil euros) de multa, teve de me pagar uma indemnização de seis mil contos (30 mil euros) por atentar contra o meu bom nome", contou.

Cometeu erros e assumiu alguns, mas garante que nunca foi abordado para favorecer este ou aquele. "Pela alma do meu pai, que é a coisa mais sagrada, nunca ninguém me telefonou na tentativa de tirar benefícios. Uma ou outra chamada com ameaças sim, do estilo "vou incendiar-te a loja, e tal". Mas juro por tudo o que é mais sagrado que nunca recebi chamadas para beneficiar fosse quem fosse, nem de dirigentes, nem de clubes ou de anónimos", garantiu ao DN o antigo juiz de Santarém, que nunca apitou um dérbi lisboeta: "Esses eram os únicos jogos grandes que os de Lisboa podiam apitar."

Mas nem tudo foi mau. E além de recordar o romeno Ion Timofte (ex-jogador do Boavista e FC Porto) como "uma das pessoas com mais elegância de trato", ainda se lembra de "umas palavras simpáticas" do presidente do FC Porto. "Já passavam 20 minutos do intervalo e estava a ver que o jogo não ia recomeçar por causa de uma lesão minha. O Pinto da Costa entrou-me no balneário e perguntou o que se estava a passar. Eu respondi que não conseguia correr e ele virou-se e disse: "Eu antes te quero a ti a coxear do que outros a correr"."

Há ainda memória de um outro clássico, na Supertaça (1995), um lance entre Costinha e Domingos. "Eu interrompo o jogo e nesse entretanto o Costinha agride o Domingos. Eu apito e toda a gente pensa que era para marcar penalidade a favor do FC Porto. Eu, estupidamente, coloquei a bola perto da marca de penálti. Foi um bruaá. "Mas o que é que ele marcou?" Marquei falta contra o FC Porto e expulsei o Costinha. Ele deu uma entrevista a tentar defender-se, mas apanhou três jogos. E fui eu o nomeado para o jogo do regresso. Quando me encontrou, o Costinha pediu para falar comigo e disse, "eu fui estúpido, tu estiveste bem"."

Pratas a fugir e o clássico do brinco

A imagem de José Pratas a fugir dos jogadores do FC Porto depois de ter validado um golo ao Benfica na Supertaça de 1992 marcou uma era. Contactado pelo DN, o juiz disse ter-se remetido "ao silêncio para sempre", depois de lhe chatearem a cabeça por recordar esse clássico, em 2015, ao jornal Record e pelos pesadelos que tinha com o Fernando Couto e o Paulinho Santos...

Mas houve um outro árbitro, Rosa Santos, que ficou na história por ser o árbitro do clássico do brinco num Benfica-Sporting (1-0), de 1977-78. "O Vítor Baptista marcou aquele golo. De repente, vejo-o à procura de algo na grande área do Sporting, ele e mais jogadores. Andavam à procura do brinco e a malta do Sporting a pedir para reatar a partida. Tive de me impor para recomeçar o jogo sem o brinco", contou o antigo juiz de primeira categoria (1984-92).

A cultura do insulto - "ladrão, ladrão era o que mais se ouvia"- sempre existiu, mas nunca lhe encheu os ouvidos. "Quando ia para os jogos, dizia à polícia, "vocês tratem deles cá fora, que eu trato deles lá dentro". Não consigo perceber como os árbitros deixam que haja tanto antijogo, tanta violência, dói-me ver certas entradas. Coitados dos avançados, é com cada cepo com dois olhos a fazer de defesas", disse o juiz de Beja, que não gostava de caceteiros: "Davam pau, mas não gostavam de ver cartão. E eu tinha sempre a mesma resposta: "Meu amigo, eu sou o árbitro"."

No tempo dele, "a lei dizia que se estivesse em linha era fora de jogo, agora em linha já é em jogo". E isso faz-lhe confusão. "Se os árbitros não forem bons e não apitarem bem, não há lei que resista", atirou Rosa Santos, que, tal como Veiga Trigo e António Rola, também foi apertado. "Fui ameaçado e denunciei alguns casos. Não quero falar de nomes ou de clubes, não quero relembrar isso, mas tive situações muito chatas e cheguei a pedir aos polícias que conhecia para deitarem um olho à minha família", disse o antigo juiz, lembrando que "não eram tempos fáceis" e "não tinham a polícia de choque no local pronta a intervir como agora". Mas o pior, para Rosa Santos, é a ordem de prioridade: "Todos querem saber qual é o clube do árbitro, que é o que menos interessa. Só se deixa condicionar quem quer."

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