O cão que ensinou a Rita a coser
A criança dirige-se à parede e estende a mão para o campo de luz onde se sucedem imagens. Estica o dedo e faz o gesto de passar a página. Baixa a mão mas as imagens continuam a mudar. Hesita, volta a aproximar a mão da parede, muda a página mas o ritmo das imagens não lhe obedece. Olha, perplexa, para o adulto que a acompanha. "Repara, a luz vem do projetor que está atrás de ti." Observa o aparelho de onde sai um cone de luz, volta aos desenhos na parede e tenta de novo controlar o movimento. O adulto coloca a mão diante da luz e a sombra projeta-se na parede. "Vês? Os desenhos saem daqui, experimenta pôr-te à frente, ficas com as imagens no teu corpo." O irmão mais velho vem inspecionar o assunto. Olham um para o outro: que coisa tão estranha, dizem as expressões deles. Brincam, desconfiados, com a luz e as sombras.
O gesto de mudar a página num telemóvel ou num iPad é hoje tão banal quanto é obsoleto aquele rodar o dedo para discar um telefone. Percebi até que se pode avaliar a geração de um utilizador de telemóvel pelo modo como utiliza o teclado. Eu, claro, uso o dedo indicador da mão direita, mas nas décadas abaixo da minha usa-se um polegar, e os mais novos digitam com os dois polegares e abreviam as palavras numa língua que desconheço.
Do mesmo modo, uma agenda de papel é coisa da antiguidade mas todos os anos arranjo uma. Gosto de passar para o caderno intacto os aniversários das pessoas mais queridas, assinalar datas que só eu sei o que significam. Sei que chegarei ao fim do ano com as folhas todas escritas, sempre a lápis para poder apagar em caso de engano. Está ali um ano da minha vida, guardado depois numa gaveta até que num dia de arrumação ou irritação tudo irá parar ao lixo.
O aparecimento das agendas nas lojas é um sinal infalível de que se aproximam coisas como o Natal, a passagem de ano, tal como o som do amolador na rua anuncia a chuva e o cheiro das castanhas assadas pressupõe o frio. Eu sei que o telemóvel, inteligente e prático, pode guardar marcações de consultas, reuniões, almoços e jantares, encontros, aniversários, prazos, até a lista de compras, e ainda por cima pode avisar com antecedência (detesto esses alertas, fico logo sem saber como apagar a frase que grita urgência). Mas por teimosia ou inércia, ou sei lá porquê, continuo a usar agendas, são uma extensão da minha memória.
Ainda não comprei a minha agenda de bolso mas já tenho uma agenda de secretária para 2018 e estive uns largos minutos a folheá-la. É por isso é que sei que o primeiro cão da Rita Blanco a fez aprender a coser, porque lhe dava cabo das almofadas e ela teve de socorrer-se de agulhas e linhas para remediar (melhor dizendo, remendar) a coisa, graças aos ensinamentos da avó. Também fiquei a conhecer a aflição do Zé Pedro dos Xutos na primeira viagem de avião, quando de repente se viu no aeroporto de Bissau sem ajuda e cheio de fome. E a primeira descoberta de Maria Manuel Mota na investigação da malária. Para cada mês, a agenda tem um texto sobre uma "primeira vez", com os sustos, as alegrias, as inquietações que cada um dos autores quis ali trazer. É a agenda solidária do IPO de Lisboa, coisa mesmo a pedir para ser comprada, e cuja receita vai direta para a unidade de transplantes de medula óssea.
E conto aqui uma primeira vez: o miúdo mais velho, acabado de entrar na primeira classe e a aprender ditongos e zeros, ensina o irmão e os primos a jogar à cabra-cega. Os outros, mais novos, acham aquilo extraordinário. Quando estão bem tontos de tanto rodar, o mais alto empurra-os e diz: "Agora tentas apanhar-me com os olhos fechados." Riem-se, nervosos. Não sabem bem o que fazer. O quê? "Estende os braços e fecha os olhos, como um zombie." Agora perceberam. Depois fartam-se e vão escorregar à vez num corrimão de pedra, enquanto lá ao fundo um outro grupo joga ao macaquinho do chinês.