O cantautor tímido

O sucesso de <i>Os Maridos das Outras</i> apanhou-o de surpresa mas não o fez perder o chão. Este mês, <b>Miguel Araújo </b>- o vocalista de Os Azeitonas e artista «fora de horas», porque gosta de trabalhar de manhã - apresenta-se em nome próprio no Teatro Tivoli, em Lisboa, e na Casa da Música, no Porto. António Zambujo e Samuel Úria vão estar com ele em palco.
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Quando subir ao palco do Teatro Tivoli, em Lisboa, no dia 17 deste mês, ou da Casa da Música, no Porto, no dia 21, é muito provável que Miguel Araújo não tenha coisa alguma no estômago. Em dia de concerto, o músico quase não consegue comer. São os nervos de quem ainda não se habituou a estar no centro das atenções, mesmo que há dez anos saiba o que é dar espetáculos ao vivo: Miguel é membro fundador de Os Azeitonas, a banda que deixou o país sensibilizado para o potencial romântico dos aeroportos ao cantar Anda Comigo Ver os Aviões . O tema, do terceiro álbum do grupo do Porto Salão América, não tinha tido grande projeção até que um concorrente do concurso televisivo Ídolos decidiu cantá-lo e o casting passou em prime time . Foi o que bastou. Junte-se o sucesso em que tantos homens se reveem de Os Maridos das Outras (e que ele garante não ser autobiográfico) e temos os ingredientes para êxito garantido.

A banda já se tinha feito ouvir com Quem És Tu Miúda , do álbum anterior, Rádio Alegria (2007). O primeiro disco, Um Tanto ou Quanto Atarantado , saíra em 2005 com o selo da Maria Records, a editora de Rui Veloso. Desde 2002, quando Os Azeitonas se formaram numa viagem de faculdade, houve quem saísse e quem entrasse. Miguel, que dava voz à banda juntamente com o vocalista Marlon, tocava guitarra e compunha a maioria dos temas, foi dos que foram ficando. Já tinha decidido que não queria fazer nem enviar currículos e que o curso Gestão de Empresas que terminara na Universidade Católica não era o caminho que queria seguir. «Vou mas é continuar ligado à música, que é onde estou bem», lembra-se de ter pensado. Não tem a data bem presente porque não foi uma decisão tomada com grande consciência e após muita ponderação. Mas sabe exatamente o ano em que começou a gostar de música: 1989. Tinha 11 anos e recebeu de presente o seu primeiro baixo.

Miguel nasceu na Maia, em 1978. Foi aí que viveu até aos 10 anos, quando a família toda - tios e primos incluídos - se mudou para o Porto. O pai, ligado ao comércio, nem sequer gosta de música. A mãe não se importava de ouvir «qualquer coisa», mas nem sequer aparelhagem de som havia em casa. É aos tios que Miguel que agradece a descoberta da vocação: os irmãos do pai e da mãe tinham-se juntado numa banda amadora, formada na década de 1960, e que entretanto se dissolvera. Vinte anos depois, voltaram a tocar, já com os filhos mais crescidos. «Compraram novamente instrumentos e juntavam-se em casa da minha avó para ensaiar. Foi esse o meu primeiro contacto com a música.» Depois, começou a escapar-se com os primos para a sala de ensaio dos mais velhos e fundaram a sua própria banda. «Ofereceram-nos instrumentos baratuchos para não estragarmos os deles.» O baixo que os pais lhe compraram acompanhou-o por toda a adolescência nas inúmeras bandas e projetos em que se envolveu, a par do liceu e da faculdade. «A música não era vista como coisa de carreira. Para mim, sempre foi coisa de horas vagas, sendo as horas vagas 23 e a restante era para estudar», brinca.

Mesmo assim, chegou a ter um álbum editado pela BMG, quando fazia parte dos Tsé Tsé. «Era uma coisa improvisada, uma onda Red Hot Chili Peppers, tudo completamente imitado», ri-se. A banda acabou depois do álbum de estreia. Naquela altura, Miguel ainda não tinha despertado para a escrita e composição dos próprios temas. Ia escrevendo «às escondidas», uma coisa pouco assumida. Só com Os Azeitonas é que despertou para o que chama de «busca da canção em si», que hoje é a parte do trabalho que mais prazer lhe dá. Quando Os Azeitonas deixaram de ser um devaneio de estudantes e o lançamento do primeiro disco os tornou um trabalho sério, Miguel Araújo trocou o baixo pela guitarra para poder cantar ao mesmo tempo. «Como era eu quem fazia as músicas, tinha sempre de cantar, pelo menos para mostrar como é que elas eram. Mas detestava cantar e não tenho facilidade nenhuma, tenho mesmo de treinar, coisa que nunca fiz em relação à guitarra.» Mas superou o handicap até porque, garante, quem ouve as suas músicas não o faz para lhe apreciar a voz. «A proposta é outra. Eu nunca iria para o Ídolos deslumbrar ninguém. Mas o Sérgio Godinho, o Bob Dylan ou o Chico Buarque também não.» São nomes que fazem parte das suas referências musicais, que traz consigo desde a meninice, quando começou a tocar com os primos. Os cantores que ouvia então «já eram retrógrados para a altura», brinca, dos Beatles aos Rolling Stones, favoritos da banda dos tios. «A música do meu tempo não me dizia absolutamente nada, o que andava nos walkman dos meus colegas de escola era Technotronic , Pump Up The Jam , New Kids on The Block ... estávamos nessa fase. Eu gostava de Eric Clapton, Dire Straits. Na minha escola só havia uma pessoa que também conhecia. E ainda hoje é o meu melhor amigo.»

Quando Os Azeitonas lançaram o terceiro trabalho, vieram os concertos. E sem perspetivas de novo álbum à vista, Miguel Araújo decidiu aproveitar a pausa criativa para se dedicar a um projeto pessoal. «Eu ia para um estúdio com o André Tentúgal que além de músico é realizador. Ele filmava-me a tocar guitarra acústica e a cantar algumas músicas que tinham sobrado do trajeto de Os Azeitonas. Ia ser uma tarde, filmávamos e púnhamos na internet. De repente, entusiasmei-me e em vez de um dia passou a três, depois cinco. Fechou em cinco dias e meio.» Acabou por ser o nome que deu ao álbum de estreia a solo. O disco chegou às lojas em maio de 2012. A abordagem foi direta, pouco filtrada, quase caseira. «Estava no estúdio, tinha um piano, uma bateria incrível, amplificador de baixo... Foi assim, sem planos.»

O terceiro single do álbum Capitão Fantástico acabou de ser lançado e mostra bem como Miguel Araújo dá preferência ao conteúdo em vez da forma, tal como já o tinham feito os singles anteriores Fizz Limão ou o sucesso Os Maridos das Outras . Até porque o que escreve e canta tem de ser verdadeiro, reconhecível para quem já o viveu e que permita uma aproximação maior de quem o ouve. Quando Cinco Dias e Meio saiu, a receção da crítica foi boa. Mas nada que fizesse supor a atenção gerada pela primeira faixa do álbum Os Maridos das Outras, que escreveu a partir de uma história contada por um amigo. Já era marido na altura, mas garante que qualquer coincidência com a realidade é pura ficção. «Foi uma das canções mais recentes que levei para o disco.» A mais antiga, Desdita , escreveu-a com 16 anos, numa época em que poucos sabiam que havia de ser um cantautor na idade adulta. Ele nem gosta muito do termo, mas concorda que é a palavra que melhor o descreve. Quando lhe perguntam o que mudou com o sucesso, fica sem jeito. «Tem corrido bem», diz com um meio sorriso. «Sou uma pessoa que está a fazer aquilo para que tem jeito e de que mais gosta. Parecendo básico, é uma sorte.»

Tem conseguido gerir a vida ao ritmo das necessidades: apesar de ter morado no Porto quase a vida inteira, mudou-se para Lisboa durante dois anos, onde conheceu a atual mulher. Foram pais há nove meses e, há cerca de meio ano, decidiram regressar ao Norte para junto da família.

Ainda antes de ter um filho, Miguel já percebera os perigos da boémia artística. Na EMI, a editora do álbum, chamam-lhe o «artista fora de horas» porque, ao contrário dos colegas de profissão, não trabalha até de madrugada, excetuando em noites de concerto: levanta-se cedo, vai correr e depois senta-se a escrever e a compor. Numa aplicação do iPhone tem o seu «banco de melodias», onde deixa as músicas «a marinar» para as ir buscar quando lhes encontra uma letra. Foi o que fez quando o manager de Ana Moura o convidou para escrever e compor uma canção para a fadista. Entretanto, está a trabalhar num «disco de canções para a infância» com António Zambujo, Pedro Silva Martins, dos Deolinda, e Luísa Sobral. Também com António Zambujo, João Salcedo - o teclista de Os Azeitonas - e Ricardo Cruz tem um projeto paralelo, Os da Cidade. Já têm um álbum pronto, falta gravar. Nos últimos meses, tem estado com Os Azeitonas a trabalhar no próximo disco da banda, com lançamento previsto para o próximo mês de maio. O primeiro single , Ray-dee-oh , já toca nas rádios.

A carreira a solo também não vai ficar por aqui: o segundo álbum de originais já está a ser preparado. Cada música, esclarece, é uma história, por isso está a pensar chamar-lhe Disco de Crónicas , inspirado «naqueles livros de crónicas curtinhas de Lobo Antunes». Até porque a literatura é outro dos seus prazeres. «Gosto de ler, gosto de cozinhar, adoro ver programas de culinária», confessa. De resto, faz vida de bairro na Foz Velha do Porto, onde mora num rés-do-chão e vai a pé para todo o lado. Sonhos, só se fosse tocar no Coliseu do Porto em nome próprio, porque foi lá que viu os espetáculos «mais míticos» da sua vida.

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