O caminho com a Índia
O Tratado de Lisboa atribuiu a representação institucional da União Europeia ao presidente do Conselho Europeu e a condução da política externa e de segurança a um alto representante. Alterou, assim, bastante as competências da presidência rotativa do Conselho nessa área. O que não significa que a tenha tornado irrelevante. Além do encargo de liderar dossiês específicos, como o alargamento ou os acordos internacionais, a presidência tem um poder de influência tanto maior quanto maior for a sua capacidade de colocar questões na agenda e facilitar a mobilização, em torno delas, das instituições.
Foi com isto presente que a presidência portuguesa definiu objetivos para a ação externa. Estabelecendo o tom: reforçar a autonomia da Europa, sim, quer na economia, quer na segurança humana, quer na orientação estratégica, mas de uma Europa aberta ao mundo, que reconhece o facto da multipolaridade e acredita na necessidade e na vantagem de interagir com todos os atores globais do nosso tempo. Daí decorre uma preocupação maior da presidência: favorecer, ao mesmo tempo, o reforço dos laços com os aliados mais próximos (como os Estados Unidos ou o Reino Unido) e usar de amplitude e equilíbrio na sua afirmação geopolítica.
Tratava-se, pois, de fazer simultaneamente várias coisas: aproveitar sem delongas a enorme oportunidade representada pela administração Biden; garantir a aprovação do novo acordo de comércio e cooperação com os britânicos; robustecer a agenda conjunta com África, de modo a conseguir os melhores resultados possíveis na próxima cimeira; favorecer pela via das negociações comerciais a aproximação à América Latina; e prestar mais atenção ao Indo-Pacífico.
Tendo em conta os programas das presidências alemã e eslovena e o trabalho do alto representante, decidimos fazer de uma cimeira com a Índia um dos pontos altos do nosso semestre. O seu valor acrescentado estaria também aí: num novo impulso (senão mesmo um novo começo) ao relacionamento entre a União Europeia e a Índia. E quem, melhor do que Portugal (ainda por cima no contexto pós-Brexit), para o tentar?
Foi um processo longo e bem preparado, em que contámos com o apoio precioso do Conselho Europeu e da Comissão e o forte estímulo do Parlamento Europeu. Em que contámos, o que não é de somenos, com a Assembleia da República. O processo culminou na Reunião de Líderes que se realizou no sábado passado, no Porto, e na declaração que dela saiu.
O agravamento da situação pandémica na Índia impediu o primeiro-ministro Narendra Modi de se deslocar fisicamente a Portugal, como era seu desejo e intenção. Mas esse é um ponto menor, que não deve obnubilar o essencial: as duas partes trabalharam intensamente, a cimeira foi devidamente preparada, designadamente com reuniões de alto nível sobre direitos humanos e comércio, as equipas negociais foram fechando os acordos, Modi participou ativamente, por videoconferência, na cimeira do Porto e o documento nela aprovado é substantivo e representa claramente esse novo impulso.
Como? Creio serem cinco os avanços fundamentais.
A realização da cimeira em formato alargado. Salvo erro, foi mesmo a primeira vez em que estiveram todos os chefes de Estado e Governo, além do presidente do Conselho Europeu, da Comissão e do alto representante. Uma maneira enfática de a Europa dizer que percebe a relevância desse país de quase 1400 milhões de pessoas, protagonista incontornável do Indo-Pacífico.
O significado do encontro ao mais alto nível entre as duas mais populosas democracias do mundo. Esta é uma cimeira em que o quadro institucional de referência de todas as partes é comum: a democracia e o Estado de direito. O que aumenta, aliás, a importância do diálogo sobre direitos humanos, em modo próprio, através de encontros dedicados (o já realizado e os agora previstos), em que as duas partes, Europa e Índia, avaliam as respetivas situações, problemas e soluções.
A decisão de incrementar a cooperação bilateral em áreas tão cruciais como a saúde e a indústria farmacêutica, as tecnologias digitais, a ação climática, a ciência e a educação.
A assinatura da Parceria para a Conectividade, que ligará doravante a Europa e a Índia em ações comuns para desenvolver uma conectividade euro-asiática fundada no respeito pelas regras internacionais, financeira e ambientalmente sustentável; e abre as portas à cooperação trilateral com África. Não preciso de adiantar muito sobre o impacto geopolítico da parceria, e como casa bem com o sentido de equilíbrio que já disse ter sido preocupação maior da presidência portuguesa. E, quando falamos de conectividade, queremos referir as infraestruturas e redes de transporte, energia, comunicação, dados e mobilidade humana.
E, finalmente, o relançamento das negociações económicas euro-indianas, que se encontravam suspensas desde 2013. Com objetivos claros: chegar a um acordo comercial "equilibrado, ambicioso, abrangente e de benefício mútuo", a um acordo de proteção de investimento e a um acordo sobre indicações geográficas de origem. Conseguimos, assim, superar um impasse que durava há demasiados anos, com prejuízo para ambas as partes. E, mais uma vez, não me demorarei sobre o óbvio significado geopolítico, além de económico, deste resultado.
Entretanto, os ministros europeus dos Negócios Estrangeiros marcaram para setembro a conclusão da estratégia europeia para o Indo-Pacífico. Em todas as suas dimensões, o relacionamento com a Índia continuará a ser, portanto, vital.
Há mais de quinhentos anos, Vasco da Gama estabelecia uma rota marítima de ligação entre o Velho Continente e a esplendorosa civilização indiana. Subsequentemente, nos séculos XVI e XVII, os portugueses puseram em prática o que bem poderíamos chamar a primeira estratégia europeia para o Indo-Pacífico. Habituámo-nos a interpretar estes factos com a ideia de que se estava então descobrindo um caminho para a Índia. Usemos agora termos mais adequados a encontros e parcerias: façamos juntos um novo caminho para um maior equilíbrio geopolítico do nosso mundo multipolar. Um caminho com a Índia.
Ministro dos Negócios Estrangeiros