O caminho acaba no rio
O caminho acaba no rio. São dez horas, mas o sinos entoam onze. A badalada que sobra chega dalém, cem metros adiante, daquele campanário no alto de Sanlúcar de lo Guadiana. Aqui é Alcoutim, terra do fim do caminho, que ninguém alcança sem propósito. Além é Espanha, que vai adiantada no tempo. Para continuar, só de barco. "Perguntem pelo senhor Armando", avisa a senhora do café que também é quiosque, o único que vende jornais em toda a vila, mas que hoje não os tem. "É domingo, sabe, e ao domingo os jornais não chegam a Alcoutim. É pena." Pois é. E o senhor Armando? É aquele além? "Sim. Vá lá que ele vos leva." Mesmo a um domingo? "Sobretudo a um domingo", replica o barqueiro. "Isto é coisa para a gente se entreter ao fim de semana. Nos outros dias esta terra é um deserto de gente."
São dez horas, ainda que soem onze, e Alcoutim entrega-se quase vazia a quem aqui chega. Para cá chegar, foi preciso intenção no desvio à estrada que liga Mértola a Vila Real de Santo António, onde havemos enfim de dar descanso a quinze dias de viagem pela raia. É uma estrada sinuosa que deslumbra pela paisagem, ora coberta de verde, ora rasa de estevas, sem vivalma que se aviste. Nestes 570 quilómetros quadrados de Algarve esquecido, nunca viveram mais que 9300 pessoas, lá pelos idos de 1900. Hoje, não são mais que 3400 em todo o concelho. Contas feitas, sete criaturas em cada mil por mil metros. Um terço vive aqui na vila, sede de concelho e fim do caminho que acaba no rio.
Para seguir viagem, gasta-se um euro e quatro minutos. Por isso a travessia não tem horário certo. "Basta que haja um passageiro e a gente atravessa," explica o senhor Armando, que tem 55 anos e já leva dois de reformado da Guarda Fiscal. Os mesmos que leva neste vaivém de barqueiro. O desembarque faz-se na Avenida de Portugal, marginal da pequena vila castelhana. Acima fica a Plaza de España, a Rua General Franco, a fortaleza desgarrada das casas lá no cimo do monte e pouco mais. Estamos a escassos metros de Portugal, mas absolutamente dentro de Espanha. Denunciam-na o odor a fritos dos almoços a sair, as ruas acamadas em laje ocre e cinzento, o fumo do cigarro negro de um raro transeunte nesta manhã de calor, a máquina de jogo à porta do café. Sanlúcar de lo Guadiana é uma terriola simpática que se mede com Alcoutim em tamanho e sobranceria sobre o rio que aqui volta a ser fronteira. Mas que dificilmente disputa encantos com a vila algarvia.
Para regressar, um euro mais. "Perguntem por mim ou pelo outro barqueiro", avisara o senhor Armando, antes de dar meia volta ao pequeno barco atochado de castelhanos. O senhor é que é o outro barqueiro? "Si, yo", responde o senhor Zé, meio desconfiado no idioma: "São portugueses?". Sim, somos. "Eu também acho que sou, " sorri. Levanta-se, chama pelo Chico, o perrito mínimo que precede cada passo deste barqueiro sem memória dos anos que leva de rio.
"Tenho 75 de idade, muitos de mar e muitos de Guadiana", vai lembrando o senhor Zé, nascido do lado de lá, que é Alcoutim, mas "trazido em puquerrico para o lado de cá". Em teoria, é português. Na prática, não sabe bem. "Andei sempre entre um lado e outro, mesmo quando a fronteira estava fechada e não se podia andar. E também andei embarcado em navios alemães, em navios holandeses, mais a hóstia! Até que o alcaide de Sanlúcar me perguntou se eu queria fazer isto. Foi há uns poucos de anos, nem sei quantos. E eu aceitei, porque assim tinha permisso para andar para trás e para diante quando quisesse." Era um privilégio. Porque nessa época, insiste, "a fronteira estava fechada e só abria três dias pelas festas das vilas, deste lado e daquele. No resto do tempo, o caminho acabava no rio".