O calvário das famílias transnacionais na União Europeia
Neste dia em que se celebra a União Europeia (UE), vale a pena relembrar um dos seus pilares essenciais: a livre circulação de trabalhadores, com abolição de toda e qualquer discriminação em razão da nacionalidade, e com direitos de deslocação e de residência. Estima-se em 3,3% a população em idade ativa na UE que reside num país diferente daquele da sua nacionalidade - cerca de 5 milhões de europeus. Uma fração significativa corresponderá a famílias transnacionais - famílias em que os agregados contam entre si com duas ou mais nacionalidades, residindo no país de uma dessas nacionalidades, ou num país terceiro. Espalhadas pelos vários países, são uma irrelevância eleitoral a nível doméstico.
Ora, esta minoria europeia, estas famílias, sorriem quando ouvem falar em sonho europeu. Não de alegria. Mas com o cinismo de quem recorda os truques administrativos nacionalistas que enfrentaram. E quando ouvem a expressão "cidadania europeia", plasmada nos Tratados da União, são bem capazes de dar uma gargalhada. É, aliás, extraordinário que tais famílias, a quintessência da União, sejam praticamente ignoradas em programas políticos, em documentos da Comissão Europeia ou até em sítios eletrónicos de serviços públicos.
As suas vidas migrantes são um calvário burocrático que, ironicamente, desapareceria com a mera aquisição da nacionalidade do local de residência - o oposto legal, político e filosófico da União Europeia. E as estórias deste calvário são intermináveis - sobretudo para os economicamente mais desfavorecidos ou com menores níveis de educação. Por exemplo, em vários países, exige-se morada local para assinar um contrato de trabalho ou para proceder ao "registo" de residência na respetiva autarquia. Mas os senhorios exigem um contrato de trabalho assinado para arrendarem a casa que daria a tal morada local. Cartas de condução com a bandeirinha azul? Cada país aprova diferentes prazos de validade e, nalguns casos, derrogando o prazo de validade original da carta do país de origem, obrigando a novo exame de condução. E o que dizer do inferno fiscal para quem não tem meios para recorrer a "planeamento fiscal"? Uma família transnacional, nalgumas circunstâncias, poderá ter que lidar com duplas e triplas declarações de impostos. Sendo frequentemente apanhada em duplas tributações ou em buracos legislativos que impedem o aceso a benefícios fiscais.
E a lista de pequenas barreiras burocráticas e legais continua na educação, na filiação, na fiscalidade das pensões e da proteção de adultos, na transferência de veículos, no comércio eletrónico e acesso a serviços digitais (que continuam com fronteiras) e no acesso a crédito bancário ou a seguros transeuropeus. Barreiras que continuam até na mais estapafúrdia das impossibilidades: a de registar nomes próprios e de família com acentos gráficos estranhos ao sistema informático do país da residência - condenando muitos a viver com nomes que não são os seus.
Um burocrata europeu responderá que existem acordos de dupla tributação (entre estados soberanos, longe de um espaço fiscal comum), cartão de saúde europeu e que não precisamos de visto para circular. Não tivessem estes burocratas estatuto diplomático em Bruxelas, e rapidamente compreenderiam o calvário destas famílias, sobretudo quando confrontados, em todas as suas dimensões, com a supimpa burocracia belga.
Colunista