"O café de todos nós", por Paulo Dentinho
Conheci o Luís Machado em Paris, numa altura em que Associação Portuguesa de Escritores se preparava para uma homenagem a Aquilino Ribeiro. Marcámos encontro na Closerie des Lilas, um café que Aquilino tinha frequentado nos seus exílios franceses. Como alguns outros cafés emblemáticos de Paris, o Procope, por exemplo (onde passou Voltaire, Diderot, Rousseau), também a Closerie tinha o seu séquito de celebridades - e que celebridades! Renoir, Monet, o nosso Aquilino, Émile Zola, Baudelaire, Scott Fitzgerald, Hemingway. E ainda Aragon, Sartre, Picasso, André Gide, Man Ray. Eram lugares de encontro, de querelas, de sonhos.
O Luís disse-me então que para Aquilino Ribeiro, "os cafés eram as grandes universidades, as antecâmeras da revolução." Sonhava-se o mundo, debatia-se política, religião, filosofia. Enfim, certamente outros assuntos...
Em Portugal também temos os nossos cafés emblemáticos, e cada capital de distrito tem o seu. Faro, que eu conheço melhor, tem o café Aliança. Lisboa tem vários, mas o Martinho da Arcada tem entre todos eles um lugar único. É certo que é indissociável de um poeta extraordinário. Mas não só. A história do Martinho da Arcada nestes mais de duzentos anos é a história do país ao longo desse tempo. E é disso que o Luís Machado nos dá conta neste livro que hoje é lançado.
Il était une fois... un café. Regressemos pois então a esse sete de janeiro de 1782, inauguração da Casa da Neve, botequim de luxo. É notícia na Gazeta de Lisboa, realçando-se, além dos ilustres convidados, a elegância e requinte do estabelecimento. O caso não era para menos, o proprietário era o Neveiro-Mor da Casa Real, o homem que tinha o monopólio do fornecimento de gelo à corte.
Durou pouco a Casa da Neve. Dois anos volvidos era já a Casa de Café Italiana. Em seguida Café do Comércio, depois Café da Arcada.
Pina Manique não gostava desses locais, centros de difusão de novas ideias. Como se dizia, "os cafés cheiravam a jacobinice e maçonaria." O Martinho chegou a encerrar. Regressou depois como Café da Neve. Rezam as crónicas que alguns artigos da futura Constituição liberal foram redigidos nas suas mesas. Ainda assim, volta a mudar de mãos, a mudar de nome. Até que a 25 de maio de 1829 reabre como Martinho da Arcada. E assim fica de vez...
A história prossegue. Há o rumor delicioso de que a grande Sarah Bernhardt por lá terá lanchado... Vem depois o ultimato britânico, o Martinho é o epicentro de onde partem milhares de descontentes contra os Braganças e com vivas à Pátria.
A modernidade vai chegando ao país: caminho de ferro, telégrafo. Os carros elétricos vão substituindo os "chora". E o Martinho vai mudando de mãos, de ementa, de clientes. Outros tempos, outras gerações. Vai vivendo as vicissitudes do país, acompanha as suas tragédias, as suas façanhas.
A monarquia agoniza, e no Martinho maçons e carbonários discutem o futuro do país, lideram movimentos revolucionários numa conspiração diária, tal como nos dá conta neste livro o Luís Machado. O preço do café sobe aos 40 reis. Por pouco tempo. Com a república chegam os escudos e os cêntimos.
A Grande Guerra estala, na república os governos sucedem-se uns aos outros, doenças chegam e arrasam aos milhares: pneumónica, varíola, tuberculose. Mas são também os inebriantes anos 20, a rádio a surgir, e a ditadura também...
Mais ou menos por essa altura, um tal de Fernando Pessoa torna-se presença diária, e é no Martinho que escreve muitas páginas do nosso imenso orgulho coletivo.
Chega depois essa outra guerra, mais devastadora. Os refugiados aparecem aos milhares e, em muito menor número, os espiões. É uma década atribulada. Pelas mesas do Martinho cruzam-se agentes de vários serviços secretos, diplomatas, escritores e artistas.
Aparecem novos nomes nas artes, Almada, Vieira da Silva, Lopes Graça, Freitas Branco, Palmira Bastos, Rey Colaço, João Villaret. No Martinho o telefone dá por 22259. À segunda-feira pode-se marcar mesa, o prato são iscas com elas.
Depois são as décadas de um país amordaçado, mas ainda assim a História não para. Há o assalto ao Paquete Santa Maria, a eclosão da Guerra Colonial. O Martinho é durante alguns anos um lugar de resistência, e Alfredo Mourão, o então proprietário, chega a abrir as portas do café para reuniões maçónicas.
Quando se dá o 25 de Abril, a bica no Martinho custa 1 escudo e 50 centavos.
No turbilhão dos anos seguintes, o Martinho continua a acompanhar o viver o país, até que o país se movimenta para que o Martinho da Arcada não deixe de viver nele. A "Associação Pessoana dos Amigos do Martinho da Arcada" exige a preservação e o restauro do café. A Praça do Comércio, lugar onde está inserido, estava já classificada desde 1910 como Monumento Nacional. O Martinho acabou por ser considerado Imóvel de Interesse Público.
1991 marca o regresso das tertúlias, dinamizadas pelo Luís Machado durante algumas décadas. No Martinho reuniram-se então algumas das mais destacadas personalidades da cultura portuguesa. Houve várias iniciativas: "Conversas à Quinta-Feira", "Rostos da Portugalidade", "As Noites do Martinho", "As Tertúlias do Tejo" e "As Mesas da Arcada".
E se Pessoa tem um lugar indelével no Martinho, por ele passaram tantos, mas tantos dos melhores de entre nós: Alexandre Herculano, Camilo Castelo Branco, Eça de Queiroz, Domingos Bom Tempo, Columbano, Mario de Sá Carneiro, Almada Negreiros, Amadeu de Sousa Cardoso, Vieira da Silva e muitos, muitos mais.
Este livro é, pois, a história do Martinho da Arcada, e com ele um pouco da história do país. Encontramos um capítulo (como não podia deixar de ser) com a história dos seus proprietários - não haveria Martinho sem eles. Há páginas dedicadas ao incontornável Fernando Pessoa - que não gostava de ser fotografado nem de atender o telefone. Há ainda cartas imaginárias ao poeta escritas por gente ilustre...
Com este livro regressamos ainda às tertúlias - as imagens estão lá para nos lembrarmos... Essas e outras:da cidade, desse café singular na cidade, até mesmo das suas ementas; lá pelo final do século XIX fixei uma açorda com ovos, açorda com dois esses, e um arroz de sustância. E depois temos ainda pequenos episódios, que dirão mais a uns do que a outros.
A mim diz-me aquele de 1959 - a Revolta da Sé, conspiração revolucionária militar, prevista para 11 de março (desmantelada pela Pide), planeada à mesa do Martinho da Arcada. Foi no ano em que eu nasci. E é por estas e por muitas outras que o Martinho, como diz o Luís Machado em título, acaba por ser "O Café de todos nós".
Paulo Dentinho é jornalista e ex-diretor de Informação da RTP.