O burro
O relógio da torre da igreja marca dez minutos depois das dez. É hora da missa. O padre vem de outra freguesia e dez minutos é o tempo que demora a percorrer os cerca de cinco quilómetros que separam as duas paróquias e a preparar-se para nova liturgia. À porta do templo, em frente aos cafés e junto à banca do cigano que vende roupa, o programa das festas em honra de Nossa Senhora da Guia anuncia uma corrida de burros para dia 12. É um clássico em Ferrel. Todos os anos, os burros da freguesia competem entre si para apurar um campeão da velocidade. No ano passado correram 21. Este ano ninguém sabe quantos serão.
O Faísca e a Rita estão entre os candidatos, mas por agora limitam-se a enxotar as moscas numa horta a 300 metros do mar. São os burros do senhor Luís, dois exemplares de uma população que em Ferrel chegou a ter centenas de representantes e que agora não ultrapassa as duas dezenas. "Ajudam no campo e fazem parte da tradição." A explicação é de Silvino João, presidente da junta de freguesia e um dos organizadores da corrida. Está na horta de Luís Nunes, um terreno de areia rodeado de canas que protegem as culturas dos ventos atlânticos. É tempo de apanhar a abóbora. "É daquela que dá pevides. As pessoas gostam e os burros também", diz Luís, sem ponta de ironia. Sónia, a filha, mete-se na conversa para dar pormenores sobre os gostos do Faísca e da Rita. "Ele gosta de fava e de milho. Ela é mais esquisita."
Faísca, o burro castanho, e Rita, a burra branca com malhas pretas, vieram de fora. "Não temos tradição de criar. Antigamente compravam-se nas feiras que havia pelas aldeias. Agora, normalmente são os ciganos quem fornece os animais", explica, mais uma vez, Silvino João. Luís Nunes refugia a timidez no silêncio, entre as couves que tem de plantar e as abóboras que terá de apanhar naquela manhã de domingo sem sol. São trabalhos a dar pouco que fazer ao Faísca e à Rita. Ela puxou a carroça que levou o dono ao campo. Ele, nem isso. "Teve um acidente esta semana", esclarece Sónia, enquanto segura uma cachorra que a tia há-de levar para França, no regresso das férias. "Ainda não tem nome", diz. É filha do Tino e da Teca, os dois cães que ficaram em casa. "Quer ver?" Tira do bolso um telemóvel de última geração e faz as apresentações. Lá estão a Teca, o Tino e a cachorra num filme de segundos que põe Sónia a sorrir.
Por pouco tempo. Não se distrai dos burros. "Pára, Ritinha", grita quando a burra arrasta a carroça para tentar comer uma erva. A Rita tem uns dez anos, idade calculada sem recurso ao método tradicional: olhar os dentes. O Faísca é mais velho. "Deve ter uns 12 ou 13", informa Luís. Sónia conta que o pai o foi buscar a Vale Benfeito, aldeia uns quilómetros a norte, e que custou 40 contos. "Um burro, hoje, já é caro", comenta o presidente da junta. "Se estiver em boas condições, ronda os 80 contos." Faísca já é um burro velho. "Pode durar mais dois ou três anos", arrisca, de olhos no burro que brinca a destruir uma embalagem de esferovite.
Luís Nunes é dos poucos a "manter" dois burros na aldeia de Ferrel. São uma ajuda para trabalhar os campos das falésias que vão da Serra d'El--Rei ao Baleal, solo fértil para feijão- -verde, alho-francês, cebolas, abóbora e couves. Já não lavra com eles, mas sobram testemunhos do que foi o cultivo noutros tempos. "O Sabino ainda semeia toda a batata com a burra", adianta sobre um vizinho. "E a burra é inteligente", sublinha Silvino, antes de um chorrilho de histórias em que os burros saem a ganhar num teste de comparação de esperteza com os homens.
E contam-se muitas histórias por aqui. De bruxas a dançar em encruzilhadas e terras que deixaram de dar na sequência do que se chama "fazer o mal" a alguém. Luís apressa-se. Ainda tem de "augar" o feijão, expressão que é sinónimo de regar e identifica a gíria dos do Bairro dos Ursos, na parte alta da aldeia. Era onde viviam os almocreves. É lá que moram a Rita e o Faísca.