O bon vivant que precisava de silêncio

O tão alegre e mundano Senhor Contente que Herman viu só tarde, como ator, "desentupir o canal com ligação à alma" precisava, diz a ex-mulher Sofia Sá da Bandeira, de estar longe da multidão
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"Histórias com ele? Tantas. Mas que possam ser contadas é que não." A resposta repete-se, telefonema a telefonema. Como decifrar alguém assim, horas depois de se saber que já não é, quando todos os que o conheceram e amaram tentam fazer sentido do que não tem? As TV e sites de notícias desfiam "reações", cada amigo ou colega a esmerar-se no elogio fúnebre. Nunca há defeitos nos mortos, não é? Nem sombras. E sem sombra ninguém tem espessura, é uma superfície mais ou menos luzidia, um fantasma mais ou menos sorridente.

Talvez quem tenha mais a dizer guarde silêncio nestas alturas; por exemplo Sofia Sá da Bandeira, que com ele partilhou a vida entre 1996 e 2001, tem na voz a hesitação de quem quer segurar as palavras. "Acima de tudo acho que o Nicolau tinha uma qualidade rara, que era uma ausência de mesquinhez. Foi a coisa de que mais gostei nele desde sempre. Não era medíocre como pessoa nas coisas do dia-a-dia." Respira fundo, tenta outra vez: "Voava mais alto e isso para mim foi sempre a coisa mais importante. Termos essa noção de que estamos todos na periferia da Via Láctea."

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João Nicolau de Melo Breyner Lopes, nascido a 30 de julho de 1940, Serpa, "transplantado para Lisboa aos 10 anos", como afirmou ao DN há duas semanas num artigo sobre o Alentejo. "Sinto-me desconfortável nas urbes", afiançou, ele que fez vida nos salões, palcos e plateaus da capital, em tantos programas de TV, tantos filmes, novelas, tantas peças e aí, na sua casa lisboeta, foi ontem encontrado sem vida, provavelmente vítima de ataque cardíaco.

Estreado no teatro ainda aluno do Conservatório, nos anos 1960, depois de passar dois anos em Direito e de ter saído para aprender canto lírico, desistindo dele pelo métier de ator, Breyner havia de ser também produtor de novelas (chegou a ter a sua própria produtora, NBP, Nicolau Breyner Produções) e realizador de filmes - Contrato, 7 Pecados Rurais, A Teia de Gelo. Bem-sucedido, sem dúvida, melhor numas coisas do que noutras: nenhum dos filmes que dirigiu ficará na história do cinema, mesmo se o segundo foi um êxito de bilheteira.

[citacao:Era pessoa para conhecer as obras de Tolstoi sem as ter lido]

Titulam os jornais: "Morreu o Senhor Feliz"; "Morreu o Senhor Contente", aludindo à rábula que fez nos anos setenta, pós o 25 de Abril, com o então novíssimo e desconhecidíssimo Herman José, os dois de preto e chapéu de coco, bengala, bigode e mímica à Charlot, Senhor Contente e Senhor Feliz. Era, feliz e contente? Parecia. O realizador Edgar Pêra, que o dirigiu em Virados do Avesso, não afeta intimidade com o desaparecido mas guardou essa imagem: "A única coisa que posso dizer era aquilo que transparecia, aquela alegria - tinha aquele lado vital, de apreciar a vida."

Quem o conheceu melhor confirma. A alegria, a generosidade, a aura de bon vivant . "A primeira tournée em que fui com ele, que ele organizou, fomos à Madeira. Ficámos no Hotel Palácio, que era o melhor, e bebíamos vinhos ótimos, fumávamos charutos Davidoff, que na altura eram os melhores, e eu perguntei: "Quem é que paga isto?" E ele respondeu: "Não sejas piroso, pá." Claro, gastámos o dobro do que ganhámos. Nunca conheci ninguém tão desprendido como ele - gostava de ter dinheiro, mas de o gastar logo." É Herman José a falar, o Herman que aos 20 anos, quando saído da Escola Alemã entrou numa peça e se sentia "como uma mosca numa teia cheia de aranhas", viu "aquela grande vedeta tomar conta de mim, proteger-me". Foi uma grande surpresa, confessa, perceber que ele "estava cá em baixo, connosco, e disposto a ser o meu anjo-da-guarda e meu mestre".

Além de o convidar para a citada rábula, Nicolau levava Herman com ele para todo o lado. "Aprendi imenso. Ele era visita de casa de tudo o que era grande burguesia." A explicação de o amigo ser tão "bem relacionado" encontra-a o humorista não tanto na origem social mas no facto de ser "um homem da Renascença": "Vi-o a dar cartas em tertúlias culturais. Era pessoa para conhecer bem as obras de Tolstoi sem nunca as ter lido. Era culto sem ter aquela vertente de viver agarrado aos livros. Apanhava as coisas."

O mesmo como ator, diz Pêra: "Tinha aquela faísca que vês que se espoleta quando representa, em que consegues sentir a interioridade sem qualquer esforço." António-Pedro Vasconcelos, seu diretor em vários filmes (Jaime, Os Imortais, Call Girl , Os Gatos não Têm Vertigens) corrobora: "Quem o visse no plateau pensaria que se tratava de um tipo negligente. Contava histórias entre dois takes, agarrava-se ao telemóvel, mas quando começava a cena saía tudo bem. Conseguia conciliar ao mesmo tempo a concentração e a descontração." E Herman, sendo Herman, faz uma rábula: "Estava ao telefone a falar da canalização, por exemplo, desligava e fazia uma cena do pai que perdeu a filha. Enquanto o outro ao lado, coitado, que tinha estado uma semana a ensaiar ao espelho..."

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Não foi sempre assim, porém, adverte o Senhor Feliz. "Ele quando começou na comédia era o mais avançado de todos - depois parece que se perdeu um bocadinho, que ficou cansado; quando faz a última série de programas de humor, Euronico [série dedicada aos países da UE que passou na RTP nos anos 90] acaba já como frete e com muito pouca paciência. Aliás ele não fazia muito bem monólogos de cena, ficava aflito, suava, coçava o nariz. Mas depois encontrou-se no ator dramático." Foi tardio, diz Herman, aos 40 e tal, 50 anos. "Quando nos anos 80 vestiu a Vila Faia [a primeira novela portuguesa] eu como espectador não fiquei impressionado. Acho que ele andava à procura de um tom. E há uma altura, passado uns anos, em que de repente estou a ver TV e digo: "Ah, que é isto?" Foi como se ele tivesse desentupido um canal que tinha ligação à alma e as personagens dele passaram a ter isso. Em privado disse-lho, a medo, e ele reconheceu." O que terá sucedido? "Se calhar a própria experiência de vida vai-nos amadurecendo."

Se calhar. "Acho que o Nico muitas vezes era uma pessoa que queria mostrar uma leveza quando tinha uma interioridade muito maior do que aparentava." É de novo Sofia Sá da Bandeira a falar. "E gostava de estar sozinho, tinha necessidade de fugir para o Alentejo. Tinha o lado sociável que lhe era muito fácil, mas também uma grande necessidade de estar dentro de si, como se houvesse uma dor nele." Hesita: "Andou a vida toda à procura de afetos. É como se ele quisesse chegar a um afeto que não conseguia atingir." O do público, pelos vistos, não chegava.

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