O bispo que usa uma morta para odiar
Sorri, toda de branco, agarrada à sua moto. É uma imagem feliz, inesperada, a de uma freira assim. Tinha tirado a carta aos 58 anos, conta o texto publicado a 5 de setembro no jornal O Regional, da sua terra, São João da Madeira, e agora andava na moto para todo o lado. Antes fazia-o de bicicleta, mas as pernas cansadas fizeram-na mudar de veículo.
É uma mulher interessante e generosa, mesmo se prudente nas respostas, a que resulta da entrevista. Quando lhe perguntam "Há algo na Igreja que não concorde ou ache ridículo?", a resposta é "que me lembre não".
Pena não lhe ter sido perguntado o que achava de a instituição à qual dedicou 40 anos de vida lhe recusar a ordenação por ser mulher e o que considerava estar na base dessa interdição que o teólogo alemão Hans Kung apelidou de "difamação essencial das mulheres" - por as apresentar como menos dignas e subalternas, tantas vezes submetidas, no seio da Igreja Católica como fora dela, a abusos de toda a espécie.
Pena; gostaria de a ouvir sobre isso. Mas talvez chutasse para canto, como quando a questionam sobre se considera que a Igreja vive uma crise: "A Igreja é uma entidade viva constituída por pessoas e a crise da Igreja corresponde à crise das pessoas."
Ou talvez repetisse os argumentos comummente usados para justificar a exclusão: Jesus era homem, os apóstolos eram homens, na última ceia só estavam homens. Quiçá ignorasse os argumentos contrários, ou não os referisse - que segundo as Escrituras foi a uma mulher, Maria Madalena, que Cristo escolheu revelar a sua ressurreição e anunciá-la ao mundo; que se apóstolo significa o que segue, acompanha e anuncia, não é possível negar a Maria Madalena, e a outras mulheres que seguiram e acompanharam e anunciaram Cristo, esse estatuto; que só mulheres ficaram com ele na hora mais negra, a da crucificação (os homens desapareceram).
Talvez Antónia nunca tivesse lido ou ouvido a teóloga e também freira Julieta Dias quando diz que a recusa de ordenação das mulheres pelo Vaticano se deve a "um medo primordial das mulheres, à ideia da mulher como mal."
Não se saberá. Ao terceiro dia após a publicação da entrevista, Antónia Pinho, que o título de primeira página descrevia como "freira radical", foi assassinada. As circunstâncias horríveis do homicídio foram logo escarrapachadas nos media, no dia seguinte, citando um comunicado da Polícia Judiciária. Antónia tinha dado boleia a um homem em liberdade condicional e este tê-la-á convidado para beber um café em sua casa. Foi encontrada asfixiada e com sinais de violação.
Sobre esse homem, que teria sido condenado a 16 anos de prisão por dois crimes, precisamente, de violação, impendia, segundo revelou o Jornal de Notícias dois dias após a morte de Antónia, um mandado de captura por suspeita de uma tentativa de violação ocorrida em agosto. Mas apesar de o MP ter emitido o mandado de detenção a 3 de setembro, este só seria despachado pelo juiz de instrução criminal a 6. Ainda não fora executado no dia em que Antónia foi morta.
Não é infelizmente a primeira vez, e teme-se não será a última, que a lentidão ou lassidão da justiça e das autoridades podem ser responsabilizadas pelo homicídio de uma mulher em Portugal. Um pouco mais de esmero e de noção do perigo que aquele homem representava e Antónia não teria morrido assim. Um pouco mais de valorização do crime de violação e seria impossível que um ex-recluso em liberdade condicional suspeito do mesmo crime pelo qual fora condenado ficasse, apesar de ter morada conhecida, uma semana à espera de ser detido.
Faz raiva, sim. E percebo que o bispo do Porto, Manuel Linda, mesmo que supostamente com a obrigação de se apresentar como modelo das virtudes cristãs - incluindo, além de oferecer a outra face, respeitar a presunção de inocência e não levantar falsos testemunhos -, tenha dado largas a ela num comunicado de 17 de setembro. Diz nele que "o sistema judiciário falhou redondamente. (...) Alguém tem de ser responsabilizado por isto. Se é pouco previsível que o sistema judicial seja "chamado à pedra", pelo menos moralmente algumas pessoas hão de sentir-se culpadas pelo homicídio da religiosa".
Sucede que o bispo não se limita a um saudável, mesmo se furioso, imputar de responsabilidades. Passa no parágrafo seguinte ao ódio. "Com honrosa exceção da Câmara Municipal de São João da Madeira, nenhum político, nenhum (e nenhuma...) deputado desses radicais, nenhum organismo que diz defender os direitos humanos, nenhuma feminista veio condenar o ato. Nenhum e nenhuma! Porquê? Porventura porque, para elas (e para eles...) as vidas perdem valor se se tratar de pessoas afetas à Igreja. Sumamente, se defenderem a sua honra."
Perante a horrível morte de uma mulher, de uma pessoa, o que ocorreu ao bispo Linda não foi falar dela, respeitá-la, honrar a sua memória e vida. Não fez um comunicado a louvá-la, a dizer-nos quem era.
Não. Ocorreu-lhe usá-la para atacar - e para atacar, logo por acaso, os que mais lutam para que casos como o de Antónia não aconteçam, os que denunciam o machismo, a indiferença das autoridades e da justiça e, já agora, da Igreja Católica portuguesa.
A Igreja Católica portuguesaa quem nunca vimos fazer comunicados a cada mulher assassinada ou violada, a quem temos visto reiterar sempre a ideia de "papéis diferentes" para homens e mulheres, do domínio do homem e da "vocação doméstica" das mulheres. A Igreja Católica portuguesa que aquando do inquérito papal aos fiéis sobre as questões da família, em 2014, "se esqueceu" de incluir uma pergunta sobre violência doméstica e desigualdade de género e que só muito recentemente incluiu esses temas, e pouco, no seu discurso. A Igreja Católica portuguesa sempre tão pronta a dar lições de moral mas que nunca abriu os seus arquivos para investigação sobre abusos sexuais, como fizeram já as suas congéneres de outros países, e se gaba de não ter cá disso; que exige aos outros responsabilidades das quais foge como o diabo da cruz.
Já chegava para indispor. Mas o bispo quis ainda acrescentar a abjeção de atribuir aos seus alvos, numa projeção clássica, o ódio que deveras sente: serão afinal eles que odeiam as pessoas ligadas à Igreja Católica - e, lê-se e não se acredita, sobretudo "se defenderem a sua honra".
Supõe-se que quando Linda fala na "defesa da honra" se refere ao que disse Amaury Blanco, conselheiro do núncio apostólico, nas exéquias de Antónia (às quais por acaso o bispo Linda faltou): que ela preferiu morrer a renunciar ao voto religioso. Porque, repare-se: não é que a mulher Antónia possa ter resistido a uma violação - se foi isso que sucedeu - simplesmente porque não queria ser violada. Neste pronunciamento, não lhe é reconhecida a possibilidade de vontade própria e existência para além da sua "vida consagrada": se resistiu, só pode ter resistido por motivos religiosos. Não poderia ter outros.
Faz sentido, claro. Qual liberdade e autodeterminação sexual, qual Antónia Pinho. Para estes clérigos, esta morte é um instrumento de propaganda religiosa e política. E esta mulher uma coisa. Como para quem a matou.
Jornalista