O bispo que "deu voz aos pobres e deixa uma luz no mundo"

1927-2017. Bispo emérito de Setúbal, morreu aos 90 anos. D. Manuel Martins foi exemplo de coragem na defesa dos mais desprotegidos
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Chamaram-lhe "bispo vermelho" porque deu voz à pobreza, ao desemprego e à fome que se abateram sobre a região de Setúbal no final da década de 70 e na década de 80, com o fecho de fábricas e empresas. A sua intervenção quase diária, quer pela denúncia, quer pela ação no terreno, acabou por ser decisiva para a mitigação da pobreza que grassava na região. Primeiro bispo de Setúbal, nomeado para a então recém-criada diocese, a 26 de Outubro de 1975, D. Manuel Martins manteve-se ali durante 23 anos, tendo passado a bispo emérito em 1998, mas mantendo sempre uma voz ativa em prol dos desfavorecidos. Até hoje, dia em que faleceu, na Maia, em casa de familiares. Eram 14.05.

"Nasci Bispo em Setúbal, agora sou de Setúbal", disse ele no próprio dia da ordenação episcopal. Chegado à região sadina no rescaldo do Verão Quente, vindo do Norte do país, D. Manuel Martins foi inicialmente olhado com desconfiança pela população que era maioritariamente do operariado, mas depressa ganhou o seu apreço, quando se tornou a sua voz pública, na denúncia da pobreza que então atingiu um grande número de famílias na região.

"A sua constante presença nas paróquias e o contacto direto com o povo, nas ruas, nos cafés, nas coletividades e em diversas organizações representantes de operários e de pequenos empresários, depressa o fez ver que as consequências da crise estavam a atingir, dramaticamente, muita da sua gente", recordou no ano passado, à Lusa, o presidente da Cáritas, Eugénio Fonseca, que trabalhou sempre de perto com D. Manuel Martins.

Sem uma solução à vista por parte do governo da época, o bispo decidiu então criar um Fundo Diocesano de Solidariedade, que recebia donativos do país e do estrangeiro, e que eram depois distribuídos pelos mais carenciados. "Tanta fome foi mitigada, tanta casa não entregue aos credores, tantos medicamentos pagos, tantos estudos, desde o básico ao universitário, assegurados", lembrou Eugénio Fonseca no mesmo depoimento.

Em 2012, face à crise e ao desemprego que voltou a lançar inúmeras famílias portuguesas na pobreza, D. Manuel Martins fez de novo ouvir a sua voz, comparando a situação à que se vivera na região de Setúbal na década de 80. "É uma situação generalizada em Portugal, que tem raízes filosóficas e económicas muito profundas, muitos discutíveis e eu ia dizer até muito condenáveis», afirmou na altura.

Nascido em 20 de janeiro de 1927, em Leça do Bailio, Matosinhos, Manuel da Silva Martins estudou no seminário do Porto e, mais tarde, na Universidade Gregoriana, em Roma. Foi pároco de Cedofeita, e foi vigário geral no Porto, a partir de 1969. Em 1975 foi nomeado bispo da diocese de Setúbal, onde esteve 23 anos, tornando-se depois bispo emérito. Em 2007 foi agraciado pelo presidente da República com a grã-cruz da Ordem de Cristo e em 2008 recebeu o galardão dos Direitos Humanos da Assembleia da República.

As reações de pesar pela sua morte não se fizeram esperar, vindas de todos os quadrantes da sociedade portuguesa.

Num testemunho emocionado ao DN, Manuela Eanes lembrou "o amigo muito especial", que "deu voz aos pobres e aos que sofrem" e que "deixa uma luz ao mundo". D. Manuel Martins, lembrou, "era de uma grande coerência de vida, não tinha medo de falar dos grandes problemas e foi sempre uma voz de coragem para defender a dignidade das pessoas e para estar no terreno com os mais pobres".

O primeiro-ministro, António Costa, disse ter recebido a notícia "com tristeza", sublinhando que D. Manuel Martins foi uma "grande referência da consciência social" e que "a melhor homenagem à sua memória é a ação pela erradicação da pobreza".

O presidente da República também lamentou a morte do bispo emérito. Ao "dar vida aos princípios evangélicos, em tempos de crise e de enormes desafios comunitários, não serviu apenas a Igreja Católica, serviu Portugal", lembrou Marcelo, evocando "com saudosa e respeitosa amizade, uma personalidade singular, que tudo fez na sua vida para contribuir para um Portugal mais livre e mais justo, e, por isso, mais democrático".

Já o presidente da Assembleia da República, Ferro Rodrigues, recordou o "homem bom e solidário" e entres muitos outros líderes partidários, que se associaram ao pesar geral, Jerónimo de Sousa evocou "uma personalidade que, em certos momentos, teve uma grande intervenção social, sobretudo no tempo dos salários em atraso".

As exéquias realizam-se terça-feira, pelas 15.00, no Mosteiro de Leça do Balio, em Matosinhos, onde a partir de amanhã decorre também o velório.

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