O barroco e os labirintos da obra de Ana Hatherly

Ana Hatherly e o Barroco - Num Jardim Feito de Tinta é uma conversa entre a obra da artista portuguesa, e o seu lado mais desconhecido, e obras do Museu Gulbenkian, entre outras instituições, com curadoria de Paulo Pires do Vale. Pode ser visitada até 15 de janeiro
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"Ainda hoje quando digo que estou a fazer uma exposição sobre a Ana Hatherly e o Barroco as pessoas perguntam "Mas o barroco porquê?"", diz o curador Paulo Pires do Vale, a propósito da mais recente exposição da Gulbenkian justamente intitulada Ana Hatherly e o Barroco - Num Jardim Feito de Tinta, patente até 15 de janeiro.

Artista plástica, poeta, com formação musical e um curso de cinema, Ana Hatherly (1929-2015) foi também uma académica empenhada no estudo deste período - professora de literatura barroca, com uma tese de doutoramento sobre o barroco, ampla investigação escrita sobre o assunto, dos textos sobre o trabalho de soror Maria do Céu até uma revista a que chamou, não por acaso, Claro-Escuro.

A exposição começa ainda no átrio do Museu Gulbenkian. Um desenho da artista em que a palavra paz se repete até se desligar do seu sentido junto de um livro que contém uma das principais ideias da época: o jogo de palavras. Foi escrito por Catharina Damazia Borges, uma informação que Hatherly desconhecia. "Teria gostado de saber que é uma mulher", diz Paulo Pires do Vale.

As mulheres têm lugar de destaque na exposição, como se verá na galeria do piso inferior, entre séries de desenhos e pinturas da artista, pinturas de época, pautas de música que escreveu, a sua poesia, (muitos) livros, emprestados pela Biblioteca Nacional, de Coimbra, da Ajuda ou de Évora, uma inédita coleção de diaporamas que usou nas aulas na ARCO no final dos anos 70 e pinturas, nomeadamente de Josefa de Óbidos, que Hatherly tanto estudou.

De uma igreja de Cascais veio a Santa Teresa da autoria da pintora portuguesa que dialoga com uma peça "da Ana", como lhe chama Paulo Pires do Vale, que a conheceu pessoalmente. A escultura Loom, "palavra que em português remete para fogo", casa chama que trespassa o coração da protagonista do quadro de Josefa de Óbidos. É um choque de épocas propositado, salienta o curador. "O choque e a surpresa são armas do barroco". "No barroco também parece que tudo está a arder".

Um pequeno texto de Hatherly dá o "mote" à exposição, explica o comissário. "A incorporação do passado no presente como ação subversiva que de algum modo permite que quer o presente quer o passado se encontrem". Paulo Pires do Vale defende que esta exposição é um ensaio sobre "a relação do artista com a tradição", remetendo, de novo, para algo muito concreto da vida de Ana Hatherly - o programa de televisão Proibido Proibir, que apresentou na RTP no final dos anos 70. De uma entrevista a outro artista, Ernesto de Sousa, sai o título deste conjunto de obras: a tradição como inovação.

Repartida por quatro núcleos temáticos, a exposição continua pelos labirintos (e jogos de palavras). O barroco, dos livros aos jardins, mergulha por esses meandros. "Algo que consideramos tão contemporâneo tem raízes tão profundas", nota Paulo Pires do Vale. É aqui que se encontra, em folha A4 datilografada, "o poema que ela considera o primeiro poema concreto escrito em Portugal". Data de 1959. Pela galeria espalham-se inúmeros desenhos a partir de textos, a sua poesia experimental, incluindo um em que Paulo Pires do Vale descobre repetida a expressão Alma Barroca.

É um período com má fama, aceita Paulo Pires do Vale. "Pensamos pelo lado formalista, demasiadas coisas, mas aquilo que interessou à Ana foi investigar a alma barroca, os temas. Por exemplo, a vertigem", nota. E nessa busca se encontra outra das suas grandes temáticas: o tempo. E com ele, o jogo e a morte. Uma série de cartas de jogo pintadas, de Ana Hatherly, representam este momento.

Já tinham sido mostradas numa exposição em que Paulo Pires do Vale tinha colaborado, ainda em vida da artista. "Trabalhámos durante um ano para essa exposição na galeria Ratton", conta o curador. "As cartas de jogar eram obsessivamente trabalhadas por ela em pequenos papelinhos", conta.

Ana Hatherly gostava de ser associada à expressão experimental, como refere Paulo Pires do Vale, e foi também uma das primeiras a experimentar a performance, como documentam as fotografias de Jorge Molder que captam o momento em rasga o seu trabalho, em papel de cenário, na galeria Quadrum (1977). Chamou-lhe Rotura.

O espólio da artista está repartido por vários lugares: o literário está na Biblioteca Nacional, todos os desenhos estão em depósito na Fundação Calouste Gulbenkian e os 350 diaporamas são da ARCO. Pela primeira vez serão vistos filmes que realizou com alunos da escola.

Segundo o curador, a exposição "é um ensaio a partir dos ensaios da Ana, cruzando com as obras que tantas vezes não percebemos que faziam sentido dentro do barroco". E o título - Num Jardim Feito de Tinta - nasce num poema de Hatherly. "O poeta olha o mundo e reinventa-o no seu jardim feito de tinta".

Ana Hatherly e o Barroco - Num Jardim Feito de Tinta

Museu Gulbenkian, de terça a domingo, das 10.00 às 18.00, até 15 de janeiro

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