O Bach do outro mundo de Isabelle Faust em Queluz
No final, terminada a magnífica e quase desmesurada Ciaccona (andamento final da Partita em ré m) num pianissimo que se esfumou em silêncio, Isabelle Faust permaneceu imóvel, olhos fechados. Durante uns bons 30 segundos, o público acompanhou-a nessa viagem "misteriosa", uma quase-meditação sobre o que se passara naquela sala ao longo dos precedentes 70 minutos. Quando enfim baixou o arco e abriu os olhos, recebeu um clamor irreprimível de "bravos!" do público que enchia por completo a Sala da Música.
Público que formara fila no exterior desde quatro horas antes (!) do início - e com "prolongamento", pois a forte afluência obrigou a redimensionar a capacidade da sala (em paralelo com um esforço suplementar não oficial para a todos acolher), o que atrasou o recital em meia-hora. Mas nenhum sacrifício seria baldado naquela tarde, face à intensidade e verdade daquilo que Isabelle Faust a todos ofertou.
São privilégio e dádiva raros, de facto, ter oportunidade de vivenciar, algures nas nossas vidas, atos - ofícios? - artísticos tão absolutamente sublimes como aquele propiciado no fim de tarde de domingo pela execução, por Isabelle Faust, e nesta ordem, das Partita n.º 3, Sonata n.º 3 e Partita n.º 2 para violino solo, de Johann Sebastian Bach (1685-1750). Foi um prodígio anunciado logo desde a forma como contrastou, na Partita n.º 3, os iniciais e contíguos Prelúdio e Loure (ou, mais adiante ainda, na Bourrée): a luminosa beleza da absoluta fluidez e a meditação pontuada de subtileza poética, onde o harmónico nunca obsta ao linear.
Oferece-se-nos falar, a propósito da arte desta intérprete, de uma "poética do arco": assim como no pianista Grigori Sokolov nos espanta sempre a variedade de modos e matizes da sua articulação, o modo como ele calibra o som que produz, assim em Isabelle esse "caleidoscópio" é realizado pelos virtualmente infinitos modos como maneja o arco do violino (cópia fiel de um arco barroco); e depois, o seu Stradivarius Bela Adormecida, que "assobio" bonito possui e como "se delicia" a preencher de luz os meandros das melodias - mas, também, como sabe ressoar e fazer-se "carnudo", como sabe adquirir gravitas e ser sisudo!
Em Isabelle Faust, a perfeição apercebida decorre da osmose entre conceção e realização, isto é, o "tandem" cristalino estabelecido entre os seus pensamento e sensibilidade (1), as mãos e o arco (2) e a resposta do instrumento (3).
E, last but not least, o "acordo criativo" das suas leituras com a substância das obras e a linguagem do compositor. Foi isso que nos manteve enfeitiçados ao longo de um recital onde tudo foi superlativo - usámos acima a palavra "sublime". Pois repitamo-la, sem receio: foi isso que Isabelle Faust foi no domingo, em Queluz.