O avesso e a sublime

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Vemos a realidade do avesso. Os acontecimentos que marcam e fazem a actualidade são reais, mas distorcidos e confusos, como o fundo de uma tapeçaria. O seu significado só surgirá quando olharmos do outro lado, vendo o desenho da realidade como foi concebido. O recuo do tempo permite vislumbrar essa diferença, pois, com o passar dos anos, vamos entendendo a dinâmica oculta aos contemporâneos, obrigados a existir no reverso confuso do quotidiano.

Poucas épocas sofreram maior distância entre avesso e direito que o século XIX europeu. Embebidas em idealismo revolucionário, aquilo que as pessoas pensavam viver, realizar e construir era muito diferente do que realmente deixaram feito. Ler as suas obras é tomar consciência pungente desse avesso, a enorme ilusão, ingenuidade, quase tolice que, exaltada nos ideais grandiosos e empolgantes, ia empurrando a sociedade para a terrível catástrofe que destruiria o mundo na primeira metade do século seguinte. A celebração, na próxima sexta-feira, dia 15 de Junho, do 175.º aniversário do nascimento de uma das mulheres mais notáveis da história de Portugal manifesta com clareza essa dolorosa dicotomia.

Libânia Telles e Albuquerque sentiu a clivagem do século logo no berço. Filha da derrotada nobreza miguelista, aos 14 anos já estava órfã pelas epidemias recorrentes da época. Esta rapariguinha, sem meios, sem família, sem contactos, haveria de criar uma das maiores obras do século XIX português. Sem escrever tratados, gizar programas ou proclamar discursos, demoliria o grande dogma da época, de uma forma tão serena quanto triunfante.

Cada era tem os seus axiomas, e poucos eram então mais dominantes do que o anticongregacionismo. Os intelectuais oitocentistas, que, como os nossos, se consideravam iluminados detentores da verdade absoluta, viam o futuro nos escombros das ordens religiosas católicas. Com um simples golpe de pena, o decreto do "Mata-frade" de 28 de Maio de 1834 pretendera extinguir essas realidades multisseculares, em nome da civilização e progresso. Claro que, como hoje, os diplomas fracturantes ficam a milhas da realidade. Os cem anos seguintes são de incontido florescimento de organizações religiosas que, típico em Portugal, é clandestino, improvisado e informal, mas bem sólido, sob inúmeros pretextos, estatutos e regimentos. O processo era pontuado por esporádicas raivas anticlericais que, com fúria e indignação, estragavam muito sem mudar nada.

Libânia esteve envolvida nos maiores embates do século, passando repetidamente pelo calvário do sofrimento, para ressuscitar sempre ao terceiro dia. Logo na juventude ficou sem tecto por causa desses ódios. A rainha D. Amélia, viúva de D. Pedro IV, criara em 1857 o Asilo Real da Ajuda, chamando a Portugal as Irmãs da Caridade de São Vicente de Paulo. O seu serviço às órfãs foi excelente, até os maçons fazerem escândalo em 1862, chocados pela presença ilegal de freiras estrangeiras em solo nacional. Conseguiram o seu intento despejando, em nome da civilização, inúmeras alunas desamparadas, pois eles tinham raivas, mas não soluções.

Pedindo a emancipação legal logo que se viu na rua, Libânia entraria cinco anos depois numa das mais pobres congregações femininas que vegetavam sob a proibição, as Capuchinhas de Nossa Senhora da Conceição, franciscanas seculares fundadas mais de cem anos antes na Aldeia Galega (Montijo). A sua entrada, com o nome religioso de Maria Clara do Menino Jesus, coincidiu com uma revolução na ordem. Aquilo que era um mísero punhado de religiosas em decadência tornar-se-ia a mais pujante congregação portuguesa de assistência social dos últimos 150 anos.

Partindo em 1870 para França, para fazer, nas Franciscanas Hospitaleiras e Mestras de Calais, o noviciado, proibido por cá, regressa no ano seguinte como superiora da rejuvenescida congregação portuguesa. Desempenhará esse cargo durante 28 anos, até à morte, a 1 de Dezembro de 1899. Durante o período, receberá mais de mil religiosas, abrirá mais de cem comunidades, num total de 148 obras, hospitais, escolas, asilos, etc. Será a primeira congregação missionária portuguesa, abrindo casas em Angola (1883), Goa (1886), Guiné-Bissau e Cabo Verde (1893). Hoje, a Congregação das Irmãs Franciscanas Hospitaleiras da Imaculada Conceição (CONFHIC) tem mais de 1300 religiosas, em 150 comunidades de 15 países em quatro continentes.

A Mãe Clara, como todos lhe chamavam, enfrentou, com profunda fé, esperança e caridade, inúmeros e assustadores obstáculos, confirmando que o martírio acompanha sempre a evangelização. O famoso caso das Trinas de 1891, o maior embuste anticlerical da história nacional, surgiu na casa-mãe da congregação. Hoje todas essas tropelias fenecem no avesso da história. Permanece o sublime serviço aos pobres, doentes, idosos e crianças que a ordem realizou e realiza, e a santidade gloriosa da que, desde 21 de Maio de 2011, está nos altares como beata Maria Clara.

Por decisão pessoal, o autor do texto não escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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